Tradução livre do texto “Reimagining the Autistic Mother Tongue”, de Jane Shi.

Notas sobre o conteúdo: abandono de crianças, pais adotivos abusivos, violência anti-Ásia e misoginia, tiroteio em massa, falsa acusação discriminatória de pessoas com deficiência* e linguagem, restrição forçada de pessoas autistas, ABA (Applied Behavioural Analysis, ou Análise do Comportamento Aplicada, em português).

Por boa parte da minha vida, atribuí minhas necessidades e o fato de que outras pessoas não me entendiam com frequência a uma inerente falta.

Me considerava ruim para comunicar, realizar tarefas, estar em grupos. A pior parte, a vergonha silenciosa pelos meltdowns (colapsos ou crises nervosas), antes de ter como nomeá-los, era que me sentia como se fosse uma pessoa ruim: manipuladora e mimada, agressiva e violenta, incapaz de controlar meu humor. Minha raiva me fazia sentir fora de controle. Às vezes eu tinha sentimentos, e então agia como se tivesse que ser controlada.

O problema sou eu, o problema sou eu, o problema sou eu.

Entretanto, meus amigos deficientes e a comunidade, especialmente pessoas deficientes QTBIPOC (Queer, Transgender, Black, Indigenous, People of Color, ou negres, trans, indígenas, pessoas não-brancas, queer), não me deixariam acreditar nisso por muito tempo. Durante a pandemia, permitindo-me confrontar de modo total as discriminações do mundo ao meu redor — sim, o mundo que deixa centenas de milhares de pessoas morrerem em nome da economia — tendo em troca o respeito que mereço enquanto ser humano, me entendi autista.

Estava nervosa: eu não estava inventando tudo isso, estava? Assisti TikToks, falas de pessoas autistas negras, trans, indígenas, não-brancas e queer no YouTube, além de documentários; ouvi entrevistas em podcasts e li livros, poemas e posts sobre justiça de pessoas com deficiência. Conheci pessoas na comunidade, fiz perguntas, pesquisei. Uma das pessoas mais próximas a mim me contou que sempre achou que eu fosse autista. Quê?

Estava amando pesquisar sobre essa identidade nova-para-mim. Sempre fui tão boa em me colocar por último que poder nomear algo que era, sou, e serei por toda a vida foi libertador.

Também sabia que não podia parar por aí. Em “Cinderella’s Stepsisters” (“As meio-irmãs de Cinderella”, tradução nossa), discurso feito na cerimônia de graduação do Barnard College de 1979, em Nova York, Toni Morrison disse que “a função da liberdade é libertar outra pessoa”.

Me perceber autista me fez sentir poderosa. Como poeta, senti que poderia escrever para as profundezas da neurodivergência, e oferecer novos contornos das verdades ocultas do passado sobre o mundo que habitamos. Senti como se pudesse despender a vergonha por conta da violência discriminatória que experiencei ao longo da vida. E isso também equivale à responsabilidade de abrir espaço para outras pessoas, imaginar para além de mim mesma, considerar o futuro, libertar mais alguém.

Um novo nome chinês para “autismo”?

Dentro de alguns meses após me entender como autista, o mundo soube da história do menino chamado Huxley, um garoto chinês autista que foi adotado por um casal estadunidense branco que expunha todos os colapsos/meltdowns de Huxley no YouTube até que, sem postar nada sobre ele havia um mês, revelaram que haviam decidido “realocá-lo”. Tal como uma mesa de centro à venda no Facebook.

A coisa sobre a qual não conseguia parar de pensar, sendo da geração 1.5 de colonos chineses, não adotiva, era que Huxley devia ter um nome chinês.

É errado pensar nisso? Por que seus pais adotivos brancos, ou talvez a agência de adoção, lhe deram o nome de um autor inglês distópico?

Após os tiroteios em Atlanta, em que seis mulheres asiáticas foram assassinadas num ato supremacista branco, misógino, anti-prostituição, e depois de muitas pessoas mais idosas asiáticas serem atacadas na rua e até mortas nos Estados Unidos, muitas pessoas da diáspora leste asiática começaram a colocar seus nomes asiáticos no username no Twitter. Era uma resposta à forma como a mídia dominante simplificava erroneamente vários dos nomes coreanos das mulheres. Era uma resposta aos seus nomes em inglês, coreano e chinês postos lado a lado em todos os tributos feitos nas nossas redes sociais. Era uma resposta à violência que as/os asiáticas/os mais velhas/os estavam passando por toda América do Norte, todos os séculos de supremacia branca. Era uma resposta à vergonha que fomos obrigades a sentir por tanto tempo, ansiando por, finalmente e coletivamente, deixar pra trás.

Meu próprio nome chinês no Twitter não é real: é um homônimo de “pipagao”, o xarope de ervas para tosse também conhecido por pei poa goa, ou pela marca nin jiom, feito de nêspera. O termo homônimo, grosso modo, se traduz a uma espécie de pele rastejante — é bobo, gótico, e não faz tanto sentido. Mas me deixa feliz zelar pela minha privacidade online enquanto exibo minhas origens com orgulho.

Nomes são complicados, sagrados e belos. E também escondidos, roubados, forçados, inventados e sujeitos a modificações. Às vezes, nomes são como chaves que usamos para trancar ou destrancar um quarto. E tem vezes que eles são como casacos que você tira ou põe, um chapéu pelo qual outras pessoas podem te reconhecer numa muvuca de mascarades, ou são como tatuagens lúdicas na clavícula. Às vezes não compartilhamos nossos nomes dados em público por questões de vigilância do nosso país de origem. Noutras vezes, nós o mudamos para que ele seja mais condizente com nosso gênero. Às vezes nossos nomes são considerados difíceis de serem pronunciados, o que faz com que sejamos considerados difíceis por extensão.

No nosso mundo supremacista branco, muitas vezes nos dão nomes para nos assimilarem à cultura dominante. Essa é uma das razões pelas quais sou chamada de Jane, nome que me deram no primeiro ano, na aula de inglês, em uma escola shangainesa. Mas, diferentemente de Huxley, tenho o privilégio de saber meu nome chinês.

Os dois nomes atuais para “autismo” em chinês são 自闭症 /自閉症 (zìbì zhèng) e 孤独症/孤獨症 (gūdú zhèng). O primeiro set de caracteres significa “self” (auto, eu), “shut-in” (enclausurado, fechade em si mesme) e “disease” (doença), respectivamente; o segundo set significa “loneliness” (solidão), “disease”. É curioso — eles me remetem à quarentena, alguém heremita que quer se manter a salvo de uma pandemia, uma solidão aguda propiciada pelo momento em que estamos, um isolamento doído pela exclusão nas decisões de saúde pública.

Estes nomes também me lembram que pessoas autistas ainda são enormemente incompreendidas e patologizadas em suas terras natais e em todo o mundo. Insultos discriminatórios em chinês, como 笨蛋 (bèn dàn), que significa “idiot” (idiota) ou “fool” (tolo), pode ser transliterado como “dumb egg” (palerma, trouxa) ou “stupid melon” (cabeção, chato), às vezes usados de forma afetuosa por pessoas queridas/próximas, permearam minha formação. Termos como 白痴 (báichī) associam inocência a idiotice e falta de inteligência a defeito. A pressão global capitalista, ocidental e discriminatória força pais chineses a criarem suas próprias instituições mal fundamentadas para suas crianças autistas em desenvolvimento, não se tratando de acomodações e cuidados, mas de conformidade; no YouTube, quando se pesquisa “autismo” e “China”, a mídia apresenta mães choramingando sobre os desafios que encaram por serem pais enquanto suas crianças são reprimidas.

Tal contexto me impulsiona a reimaginar uma reivindicação cultural que deve envolver pessoas com deficiência, nós falando por nós mesmas.

Que nome poderia ser melhor para “autismo” em chinês? Afinal, as línguas são maleáveis: como “massa”, “água”, como as paredes das prisões se desmoronando para fazer caber uma sociedade melhor. Gírias emergem constantemente pela internet de Hong Kong, China e Taiwan. O ideograma para o macarrão biangbiang, uma das mais complexas, e que não pode ser digitada, é um elaborado amálgama de múltiplos caracteres, incluindo aqueles para “lua”, “cavalo”, “falar”, “coração”, “oito”, “teto”, “faca” e “caminhar”.

A criação do pronome neutro em chinês, “X也”, nos remete às raizes ocidentalizadas e coloniais do gênero binário por si só, e ao fato de que “他” originalmente se referia a todos os gêneros.

O problema com a palavra chinesa para autismo, algo que todas as pessoas autistas enfrentam hoje, é que a história do autismo é instrinsecamente atada à história da eugenia, uma história europeia empenhada no estudo de pessoas, em falar por elas, categorizando-as equivocadamente, confinando-as, torturando e matando-as.

Uma história de violência, coerção e desgaste da autonomia e de identidades. A Análise do Comportamento Aplicada (ABA) é um método de tratamento intervencionista em crianças autistas, criado pelo Dr. Ole Ivar Lovaas, também responsável pela criação da terapia de conversão/de reorientação sexual, que mirava em comportamentos autísticos. Tais estruturas seguem a lógica da terapia para compulsão sexual, o lar da vergonha misógina que propulsionou o assassino ao tiroteio em Atlanta. Assim, “tratamentos” enraizados em vergonha e estigma seguem a lógica do tratamento para transtorno por uso de substâncias, envergonhando pessoas que utilizam drogas como tratamento. Isso impede a implementação de serviços voltados a redução de danos, que salvam vidas numa crise de opioide.

Esse violento emaranhado histórico e suas associações faz parte dos motivos pelos quais muitas pessoas da comunidade autista decidiram que “Asperger” não é um bom termo, pela rejeição das etiquetas “baixo” e “alto funcionamento”, e por quê constantemente discutimos que palavras e linguagens queremos usar para nós mesmas. Dito isso, se enxergarmos o autismo pela perspectiva daquelas pessoas que originalmente cunharam-no, e não das pessoas autistas contemporâneas, nunca viveríamos em uma sociedade justa onde todo mundo pode sobreviver e prosperar.

O ideograma chinês para “self”, ou “auto”, “eu” (自/zì), e o ideograma em “can”, ou “capaz” (可/kě), com o ideograma tradicional chinês para “love”, “amor” (愛/ài) dentro do ideograma de “mouth”, ou “boca” (口/ kǒu). As letras, em preto, estão centralizadas sobre um retângulo branco translúcido que, por sua vez, está sobre um fundo com folhas e rosas brancas rosadas. Criado por Jane Shi.

Encontrando a língua para nos amarmos

Numa determinada noite do mês passado, não conseguia dormir. Pensei “por que não inventar uma palavra chinesa para ‘autismo’?” Sendo falante da língua por herança, meu vocabulário é bem limitado. Só consegui pensar nas palavras para “cute person” (“bonitinha/o”, “fofa/o”) — 可愛的人 (kě’ài de rén) —, que envolve os caracteres para “capaz” — 可 (kě) — e para “amor” — 愛 (ài). Isto é, aquelas/es que se permitem ser amades. Então, peguei minha caneta rosa e coloquei “amor” dentro do “口” (kǒu: boca, abertura, entrada, por exemplo) do ideograma para “capaz” (可). Era como colocar amor dentro da boca de alguém, protegido e envolto, mas ainda presente. Daí, quando coloquei o ideograma de “eu” — 自(zì) — ao lado dessa palavra nova, entendi seu significado: aquelas/es que se permitem se amar.

Essa nova palavra me lembrou que não precisamos falar que amamos para expressar amor. Me lembrou que falar não é a única forma de se comunicar.

Estava principalmente brincando e experimentando quando postei esse neologismo no Twitter. Além disso, estava tentando nos imaginar, autistas, sendo pessoas amáveis para nós mesmes, e não para outres. Não como ensimesmades mas como pessoas que têm limites (impostos por nós) e protegem o amor que compartilhamos. Não inerentemente solitáries, mas feitos solitáries por um mundo que escolheu nos isolar.

A teoria de Sianne Ngai sobre a “cultura fofa” aplicável à arte avant garde me fascina. Ela argumenta que a fofice em nossa sociedade capitalista tem a ver com consumo. Seria errado chamar pessoas autistas de fofas, de forma geral — não somos bugigangas pra comprar e jogar fora, um brinquedo que você só quer por perto quando macio e abraçável, nunca afiado ou duro. Mas o meu reimaginar especulativo linguístico me faz perguntar: por que escolhemos marginalizar pessoas autistas, infantilizando-as e percebendo-as como sendo fofas ou consumíveis em um momento, e então violentas e agressivas em outro?

Na análise de Rotem Anna Diamant sobre a teoria de Ngai, ela conta sobre como a fofura pode ser subversiva para pessoas que a reivindicam através da aparência física: “a fofice pode ser uma camada de artifício que sinaliza aquilo que desejamos comunicar; ela pode permitir que nos apresentemos como queremos; é uma conversa sobre quem somos sem precisarmos dizer isso em voz alta”. Quando reivindico a fofice sendo pequena, baixa, leste asiática, queer e autista (alguém que sempre foi enxergada como fofa), e uso a palavra “fofa” para reimaginar o autismo em chinês, exponho a impotência que as pessoas autistas têm suportado por todo esse tempo. Pergunto: a percepção de outras pessoas da minha fofice é uma permissão para que elas me machuquem? Ela faz com que outres me amem como a palavra chinesa para “cute”/”fofura” sugere? É melhor ser solitárie, enclausurade ou consumide? Por que essas são as únicas categorias disponíveis?

Várias de nós, autistas, mantêm bichos de pelúcia por perto. Embora sejamos pessoas adultas, somos tratadas como crianças, o que apenas mostra como a sociedade trata mal as crianças. Mas, na verdade, nossos interesses especiais e stim toys são a forma como praticamos autocuidado e amor próprio. Lições muito mais sábias e complacentes do que punição e privação, tanto para crianças quanto para adultes.

Linguagem é um parquinho; palavras são stim toys. Não faz sentido só eu brincar com elas. Se é melhor reivindicar a atual palavra chinesa para autismo, desestigmatizá-la, ou então inventar uma palavra, fica à cargo de toda a comunidade. Não consigo imaginar uma única resposta que atenda a todo mundo.

Queride leitore: se você é autista e possui um relacionamento com a língua chinesa (seja porque você cresceu com ela, é fluente, falante por herança, quer se reconectar ao idioma ou viver sob as normas imperiais), como você quer que a palavra para autismo seja?

Moro em terras ancestrais ocupadas, não-cedidas e tradicionais dos povos Musqueam, Squamish e Tsleil-Waututh. Quais são as palavras para neurodivergência e autismo (assim como existe no povo Cree) em Sḵwx̱wú7mesh sníchim e hən̓q̓əmin̓əm̓?

Como se diz autismo em sua língua? Você acha que deveria ser diferente?

Essas não são perguntas meramente retóricas. Quero que a comunidade autista geral esteja segura o suficiente para que nós, pessoas multilíngues racializadas, possamos expressar e misturar nossas heranças. Quero que a diáspora chinesa seja um lugar onde posso me sentir segura enquanto autista. Por meio da reimaginação da língua, também quero imaginar que podemos desfazer a violência colonial e discriminatória ao nosso redor.

A diáspora pode refazer cultura e tradição, da mesma forma como nas terras natais, bem como pessoas autistas na diáspora. A questão não é só quem ou onde.

A questão é que isso nos liberta.

*N.T.: gosto de puxar a atenção para o fato de que, embora sejamos amplamente conhecidas como pessoas com deficiência (PcDs), é importante reforçar que a deficiência está no mundo, na sociedade que nos enxerga desse modo, e em como ela delineia questões como acessibilidade, por exemplo, e por conta disso, pessoalmente sou contra esse termo (sim, “pessoas com necessidades especiais” é ainda pior), porém respeito a decisão da maioria da comunidade, que atualmente opta por ele.