Conversa com a CEO do Preta, Nerd & Burning Hell sobre reciprocidade radical, novos imaginários e solidariedade antirracista.

EP. 1 • Anne Quiangala — RAWR! | Conversa com a CEO do Preta, Nerd & Burning Hell sobre reciprocidade radical, novos imaginários e solidariedade antirracista.

O texto abaixo é uma transcrição do EP. 01 • Anne Quiangala, primeira temporada “Novos imaginários, narrativas fundamentais”, da RAWR! Podcast!. O podcast está disponível no Anchor, Spotify, e diversos agregadores de áudio, escolha seu preferido e nos acompanhe!

[Rycca] Bem-vindes ao podcast RAWR!, que vem com o desejo de conversar sobre interseccionalidades, mulheridades e cotidiano. Este é o primeiro episódio de uma série com convidades incríveis, e só poderia ter começado este projeto com uma das minhas maiores referências de vida, alguém que tenho o privilégio de chamar de amiga, Anne Quiangala, fundadora do Preta, Nerd & Burning Hell.

[Anne] Oi, eu sou Anne Caroline Quiangala, editora, criadora, CEO do Preta, Nerd & Burning Hell, um canal do YouTube. Produzimos vários conteúdos, principalmente no blog, e falamos sobre cultura pop, nerdiandade preta e feminista.

[R] Hoje vamos reunir alguns contextos que há tempos compartilhamos e conversamos, pensando em pertencimento, gênero, raça, e também novos imaginários para o futuro.

Matéria: “Anne Quiangala, que não tem medo de dizer que é ‘ok ser mulher, negra e nerd’”, Janeiro/2019. Todo dia Delas é um projeto do Huffpost que trouxe durante 365 dias entrevistas com mulheres incríveis.

Solidariedade antirracista

Yuri Kochiyama, nascida em 1921 em San Pedro, Califórnia, em 1942, após os bombardeios de Pearl Harbor, foi encarcerada com sua família em um campo de concentração em Jerome, Arkansas, um dos que mantiveram mais de 120 mil americanos-japoneses e japoneses cidadãos durante a Segunda Guerra Mundial. Yuri Kochiyama nomeia essa época como o início de seu “acordar político”.

Depois da SGM, Kochiyama, já casada e com filhos, se mudou para Harlem, em Nova Iorque, e foi neste momento, em vivências em família na Harlem Freedom School, uma escola na qual eram ensinados ativismo, integração educacional. Experienciando principalmente o aprendizado da história negra, e ouvindo pessoas negras ativistas, escritoras, filósofas, em 1963 Yuri Kochiyama se tornou companheira e amiga de Malcom X.

O seu trabalho se estende por todo um contexto de justiça social, sendo também uma grande ativista pelo direito de liberdade a presos políticos. Um dos casos mais notáveis foi a luta pela liberdade de Mumia Abu-Jamal, membro dos Panteras Negras, rádio jornalista que fora acusado injustamente.

Kochiyama e Gloria Lum, americana-chinesa e ativista, cofundaram a Organização Asians for Mumia, um coletivo de asiáticos-americanos que lutavam em prol da liberdade de Abu-Jamal. Mais recentemente, Yuri Kochiyama lutou pelo direito das pessoas árabes e muçulmanas, pós 11 de setembro. A sua vida foi sendo dedicada à criação de espaços no qual a solidariedade antirracista e a luta por um direito global de liberdade fossem conscientizadas. Uma de suas falas mais importantes é: “A minha meta é construir pontes, e não paredes”.

✦ Yuri Kochiyama, Activist And Former World War II Internee, Dies At 93

✦ Listen to NPR’s interview with Yuri Kochiyama in 2004

[R] Começamos este bloco citando um pouco da história de Yuri Kochiyama, figura que foi muito importante para o entendimento das minhas práticas como ativista e pessoa asiática brasileira. Obviamente as perspectivas americanas não se enquadram diante do que vivemos como brasileiras, sul americanas, pensando até, principalmente, no contexto sul global. Porém, o trabalho da Yuri Kochiyama foi muito elucidador para mim, como ativista, quanto à prática do direito à minha ancestralidade, etnicidade, ao meu direito de ser asiática brasileira, totalmente convergente com a luta por demais populações e comunidades consideradas minorias de direitos, mas que no final são maiorias quantitativas.

Daí, vejo como a solidariedade antirracista, principalmente em prol à comunidade de pessoas negras, sendo pessoas asiáticas brasileiras aliadas à comunidade de pessoas negras, essencial para o contexto da noção de brasilidade, e até questiono como, por conta dos privilégios de classe, ou mesmo de passabilidade em uma retórica histórica colorista que vivemos aqui no Brasil, pessoas asiáticas brasileiras costumam se atrelar mais à branquitude do que ao contexto de racialização, sendo que essas comunidades não entendem que compactuar e cooptar com a branquitude só aumenta as formas de opressão para elas mesmas.

Essa racialidade que uma hora é e noutra não é, “sou racializada quando convém, e não sou quando preciso ser silenciada”, acaba tirando nossos próprios direitos identitários e, consequentemente, direitos sociais, por você ser apenas um mecanismo do capitalismo, porque toda essa perspectiva da minoria modelo é uma comemoração da comunidade asiática brasileira por ser uma boa mão de obra do capitalismo, pensando também o asiático de uma forma global. Isso cria um sentido de que essas comunidades asiáticas brasileiras acabam construindo dentro de si um sentimento muito forte de racismo e antinegritude.

Acho essencial a pauta da conversa sobre esse racismo, sua desconstrução e desmantelamento, principalmente dentro de uma esfera do feminismo. Suas principais práticas sendo não só desmantelar o patriarcado, mas o patriarcado racista, pensando especificamente, também, como o racismo afeta de forma primordial pessoas negras no Brasil.

Começo essa conversa querendo discutir mais com você sobre solidariedade antirracista, sobre aquilo que nomeamos nas nossas conversas como o nosso encontro “para além dos trilhos”, levando em consideração as nossas práticas de ativismo conjunto, nossos pensamentos sobre estes cenários. Para mim, principalmente, é sobre estabelecer esta pedra fundamental no movimento feminista: a solidariedade antirracista, a qual precisa ser tão importante quanto a luta antipatriarcal.

[A] Acho que, em um primeiro momento, é interessante que, no conceito de privilégio, quando penso nisso, me vem uma narrativa ou DNA, uma estrutura que é fixa, que não pode ser retirada de dentro da organização do mundo em que vivemos, que os direitos estão garantidos, e existe este um, e também o outro, que é qualquer pessoa ou marcador social que não possui nenhuma garantia de nada.

É claro que neste rol de pessoas, de grupos sociais que não têm direitos garantidos, e que em um momento de crise serão penalizados, existem muitas diferenças também. No momento da privação, ou naquele em que você se torna algo, que você é tornado algo por fora, na verdade, pela alteridade, você terá muito prejuízo de n formas, mas ao mesmo tempo você também terá um sofrimento mental pelo que você é, e que não deveria ser um problema, mas acaba se tornando pelo que vem externamente, pela força que vai te deformando por fora.

Essa experiência de sofrimento pelo que você é, pela maneira como a sociedade te constrói, cria uma falsa compreensão ou ideia de que a passabilidade torna as pessoas de cá, “para além dos trilhos”, em pessoas do lado de lá. E isso é uma premissa que não é verdadeira, porque como a Grada Kilomba diz, não conseguimos permanecer, pois o primeiro erro, ou a primeira coisa que dizemos, e com a qual as pessoas não concordam, estes elementos físicos, virão à tona. O imaginário virá à tona, independentemente do lugar social que a pessoa esteja ocupando, então, não consigo enxergar como um privilégio. Consigo entender como um acesso ou facilidade, que será apenas um mecanismo a ser usado como exemplo para dizer que “olha, ela/e conseguiu”, então, este grupo ao qual ela pertence, na verdade, não quer chegar aqui.

O que é o privilégio? Não acho que possamos partir dessa ideia de privilégio relativo como sólido, sobre o qual construiremos nossas bases, nosso ativismo de solidariedade. Acho que em um primeiro momento, o que temos que pensar é nisso: qual é o seu lugar nessa teia de violência? Com certo realismo, para que possamos entrar em uma loja sem que o segurança fique nos perseguindo. Mas tem outros elementos que também compõem essa experiência do corpo racializado. São vários equívocos que podem surgir nessa nossa vontade de criar uma base comum para o ativismo, e que confundimos com solidariedade, e às vezes não é.

Quando temos este interesse real, no sentido de construção de uma solidariedade que é sobretudo de reciprocidade, uma vontade de fazer as coisas junto sem tornar as diferenças um fator de mais replicações de violência, acho que a partir daí, sim, conseguimos pensar em um futuro em que essa maioria numérica possa construir novas alternativas e mentalidades a ponto de tirar estes 3% dessa condição de “para sempre”.

[R] Enquanto você falava lembrei muito de Angela Davis neste último livro, “A liberdade é uma luta constante”, e acho muito inspirador como Davis enviesa na sua própria militância que, óbvio, tem uma essência em prol da população negra, pensando também em feminismo negro, mulheres negras, ela também fala sobre outras práticas de ativismo, como a luta pró-Palestina. Nesse livro, acho muito emocionante como a liberdade é uma luta constante, ou seja, ela ainda não foi conquistada, porque no final trata-se de uma crítica ao momento econômico que estamos vivendo.

Para a Angela, por ter este viés marxista, a vitória do mercado não necessariamente significa a liberdade das comunidades, das pessoas até então oprimidas pelo sistema e pela hegemonia. Ou seja, ainda estamos em busca da liberdade. De acordo com os contextos de solidariedade antirracista e de pautas propostas pela Angela Davis, é exatamente a compreensão de que a libertação dessas diversas narrativas e perspectivas o que vai realmente nos mover para uma liberdade integral. Queria perguntar se você poderia comentar um pouco sobre isso, discordar, complementar, sei que você é uma grande leitora desse livro.

[A] Acho que este livro nos dá um ânimo muito grande para mantermos o desejo de mudança vivo. É muito interessante como ela também consegue trazer essa intersecção de pautas para o cotidiano. Ela fala sobre momentos em que a população negra estava lutando nos Estados Unidos e por meio do Twitter os palestinos deram dicas sobre como lidar com gás lacrimogêneo, por exemplo. A partir dessa situação mediada pelo Twitter, vamos percebendo que existem conhecimentos, práticas e ferramentas políticas que cada grupo conseguiu acumular ao longo do tempo, a partir de suas experiências pessoais, porque somos todos sobreviventes.

A história da imigração japonesa no Brasil também é muito repleta de violências, sobre as quais inclusive não se conversa, são pouco comentadas. Não são histórias que a maioria das pessoas brasileiras conheçam. Dessas experiências de opressão e sobrevivência, o que aprendemos e podemos trocar, e usar para desmantelar isso que está aí atualmente?

Porque o sistema, tal como está no momento, não será destruído pelas mesmas estratégias que o construíram. Temos que pensar em alternativas, e com essa solidariedade que vem desse desejo de construir um novo mundo, novas mentalidades, aí sim conseguiremos uma vitória real, mas também não sei se essa vitória será finalizada de alguma forma. Acho que é a dialética de que sempre existirá um grupo tentando oprimir outro, mas acho que a resistência também é inerente.

Então, lutaremos constantemente, estaremos resistindo sempre, até o momento em que conseguirmos ter uma cidadania de primeira classe, que todos também terão. O desejo é de que todos tenham, no sentido de cidadania plena, aquilo que a própria Angela Davis fala sobre a abolição não ter sido um fato real até o presente momento, em relação à população negra. Assim, a real democracia para pessoas negras e racializadas de modo geral precisa vir desse amplo número de pessoas com um desejo, ou objetivo comum de liberdade.

Documentário: “Mountains That Take Wing: Angela Davis & Yuri Kochiyama” (2009), dirigido por C. A. Griffith, H. L. T. Quan, que acompanha 13 anos de conversa entre as ativistas revolucionárias Angela Davis e Yuri Kochiyama.

Ativismo e reciprocidade

[R] Também fiquei pensando muito sobre como as práticas de ativismo também podem ser diversas. Hoje, precisamos dessas perspectivas de locais de pertencimento e reconhecimento entre os grupos de que fazemos parte, assim como ter espaços de interseccionalidades de pautas e de construção de uma liberdade constante e mútua. Às vezes sinto que, como ativismo, ainda há muita procura de uma resposta de prática que seja única, sendo que estamos nesse momento de “teia”.

Nós, como ativistas, talvez não devêssemos procurar locais únicos e finais, resultados, porque o processo é uma luta constante. O que você acha sobre essas práticas de ativismo? Como elas se agregam entre si? Você teve que responder essas mesmas perguntas em algumas palestras que você deu, “sobre a necessidade de sermos radicais ou acolhedoras”? Pois nunca entendi como as pessoas podem viver realidades em que essas duas formas de revolução não estejam juntas. Ainda precisamos de choque e embate, tanto quanto de espaços de acolhimento e educação. Não sinto que seja uma escolha. Queria saber a sua visão quanto a isso.

[A] Atualmente estou muito empolgada estudando um tipo de crítica literária de abordagem fluida; isso significa que estamos pensando para além dos gêneros literários como horror ou ficção científica, por exemplo. Existe um conceito para isso, que é ficção especulativa, mas todos esses gêneros, sendo “borrados”, nos informam sobre algo. A literatura não é pura, e criar um molde sobre como um texto literário deve ser, para ser catalogado, não funciona para pessoas autoras negras, quando falamos a partir de um lugar da interseccionalidade.

E isso, para mim, joga uma luz sobre o funcionamento disso no mundo social. Pensamos de forma muito automaticamente binária; é um exercício diário passar por essas fronteiras. Existe um imaginário criado sobre todos os conceitos, e somos sempre impelidos pelo pensamento convencional a nos inscrevermos neles: no caso da militância negra, sou a radical ou separatista, ou então estou compactuando com a branquitude. Na prática cotidiana, não existem outras formas, ou a possibilidade de pensar que todos estão aqui neste planeta, no pensamento convencional. Como numa sala de aula, podemos deixar uma turma e ir para outra. Precisamos pensar em soluções dentro dessa lógica, desse contexto. Simplesmente separarmos, ou integrarmos tudo a qualquer custo não pode ser uma solução.

Nós é um filme que nos mostra isso, de se integrar a qualquer custo, a política da respeitabilidade, de que tentar ser o que você não é não é uma solução ok. Essa coisa de ser ativista fofa não resolverá o problema, porque a violência não é fofa, e sim desigual. E essa violência será paga com a mesma violência? O Código de Hamurabi resolverá nosso problema? Não. Então precisamos pensar em alternativas. Existe muita gente disposta a realmente lutar e entrar nessa convergência do ativismo de solidariedade antirracista, de reciprocidade. Existem pessoas brancas que estão naquele processo da reparação, de compreender que estes direitos assegurados não são justos, e que o ideal é que todos tenham condições e direitos a ter e ser um “eu”, e tudo o mais.

Penso que precisamos “borrar” um pouco a ideia de que o ativismo precisa ser apenas radical. Acho que “radical” é um conceito que, assim como o anarquismo, é utilizado de maneiras muito estranhas. “Radical” significa “ir à raiz das coisas”. De que forma questionaremos a hegemonia se não formos à sua raiz, destrinchando-a e entendendo-a, atacando cada um dos elementos?

Mas quando as pessoas misturam esse radical com a radicalidade de implementar medidas mais concretas contra a violência, na verdade não se trata de uma revanche ou algo similar, tipo Bacurau, “se me atacar vou atacar”. Não vou atacar, vou resistir, me defender. Não é a mesma luta, não são os dois lados errados, os dois lados possuem extremos. Existe uma hegemonia, e todo mundo que está do lado de cá, para além dos trilhos. E é claro que o mundo não é binário, a solução não implica em simplesmente acreditarmos que “eles querem me matar, então vou matar”. O mundo não é só isso, pois o ser humano é complexo.

Acredito que estejamos caminhando para pensar em soluções, em um mundo onde todos tenham direitos e sejam cidadãos, sim, que essa dicotomia do centro da periferia seja destruída em todas as camadas de opressão que vão se subdividindo, em relação à gênero, raça, classe, idade, capacidades físicas, enfim. E então voltamos àquele início de que todos precisam ter consciência de quem são e onde estão na teia social. Com uma disposição muito grande também para agir, se posicionar realmente em relação a isso, e quebrar essa mentalidade. E nem falo sobre abrir mão dos privilégios, porque não é sobre isso. Quem tem que fazer isso são as pessoas que realmente os possuem, entender que estamos aqui numa luta conjunta.

[R] Isso me lembra muito a Veena Das, antropóloga que pesquisou a situação das mulheres na Guerra da Partição, quando houve a divisão entre Índia e Paquistão, e ocorreram várias guerras civis. O que acho mais poético na maneira como ela construiu essa etnografia, que tinha muito a ver com a escuta, é que ela não levava câmera nem gravador, pois ela queria realmente se engajar em uma conversa de entendimento com essas mulheres. Na época, ela compreendeu que a revolução também está no cotidiano, porque naquele momento, o contexto de revolução só estava atrelado aos corpos presentes na guerra civil, que no final eram homens, protagonistas daquelas lutas.

E o que Veena Das questionava era sobre quem é o “agente”. Quem vive o cotidiano é agente, ou só quem está presente fisicamente na guerra? E ela vinha à tona com essa reflexão de como o ordinário é “agente”, e não somente o extraordinário. Às vezes acho que nos sentimos muito impotentes, e que muitas das pessoas que, por exemplo, não se atrelam a um discurso mais responsável, pontuado na luta antirracista, o fazem por não saberem onde se situar, justamente porque muitas vezes acreditam que a revolução está no extraordinário.

Voltando à Veena Das, ela dizia que quem estava naquele momento vivendo o ordinário, o cotidiano no contexto de uma guerra tão violenta, vivia a revolução. E às vezes, sinto que as pessoas se escondem atrás do fato de não fazerem uma revolução porque elas acham que não podem ser chamativas, ou ter protagonismo, liderança. Quando sinto que o entendimento de poder ser revolucionário, principalmente na luta antirracista, esteja na desconstrução do cotidiano, da visão de mundo, nos nossos entornos, encontros, imaginários, consumos, pensando sociedade capitalista.

Tenho até uma crítica feroz quanto a esse ativismo da virtualidade, em que você postando uma notícia está apoiando tal vertente, pessoa ou comunidade, ao mesmo tempo em que não efetua na sua vida cotidiana essas transformações. Essas transformações de vontades e sociedade, de transformação política, também podem estar contidas no ordinário, nas relações afetivas, nessas camadas mais sutis, muitas vezes desvalorizadas. A maior presença é a maior vivência, e existe no dia a dia. Enfim, Anne, queria saber sobre sua relação com essas formas de posicionamentos, ativismo na internet e práticas.

[A] Acho que é exatamente este o ponto, precisamos entender e reconhecer que as práticas cotidianas é que transformam o mundo no que ele é. No cotidiano, temos uma forma de vivenciar o que acreditamos, que é como você disse, entendida como menor, mas é assim porque, em relação ao mundo público, o mundo privado é sempre considerado mais feminino, sendo bem menos valorizado. No final das contas, as práticas de micropolíticas têm um valor essencial para a nossa mudança, porque a maneira como nos conectamos com as pessoas e escolhemos ter determinado tipo de alimentação, a forma como escolhemos e entendemos que nossa saúde mental também é importante, temos um empoderamento individual, que não é o objetivo, mas um passo para conseguirmos pensar em um empoderamento coletivo. Não existe coletividade saudável se o indivíduo também não estiver saudável.

É interessante pensar nessas práticas, como ensinar conceitos e ideias, a história que não é contada no mainstream, na escola para crianças ou pessoas mais jovens, por exemplo, todas essas ações são muito importantes na construção e pavimentação do que estamos pensando como um mundo do futuro. Com certeza mulheres estão mais propensas a entender o poder da micropolítica.

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Quadrinhos: Ms. Marvel: No Normal — Issue 1 e Ms. Marvel: Issue 31Kamala Khan é uma adolescente paquistanesa-americana nascida na cidade de Jersey, fã de super-heróis, em especial a Capitã Marvel. Em uma noite em que ia encontrar colegas no rio Hudson contra o desejo dos pais, foi atingida por uma névoa misteriosa; Quando acordou no dia seguinte, possuía superpoderes! Kamala é uma personagem da editora Marvel Comics, sendo a atual Miss Marvel.

Novos imaginários e cultura pop

[R] Esse contexto de micropolítica e cotidiano nos faz chegar no ponto de finalmente conversarmos sobre cultura pop, nerdiandades e referências, principalmente pensando nesses contextos como grandes propulsores de novos imaginários. Hoje, existe essa cultura pop mainstream que ainda acaba retomando ideias hegemônicas, ao mesmo passo em que eles tem usado muito o contexto de diversidade para renovar os produtos de forma a reconstruir o mercado.

Mas principalmente diante de uma referência que, para mim, sempre vem muito à tona, que é a exposição “Não podemos construir o que não podemos imaginar primeiro”, da Jota Mombaça e do Thiago de Paula (curadores). Essa ideia ficou muito vívida na minha cabeça, sobre o que é construir novos imaginários.

Penso que nosso trabalho é um pouco de vir à tona com o porquê de cultura pop e nerdiandade ter a ver com a criação destas novas perspectivas, e que nossas identidades, corpas e narrativas sejam incluídas de outras formas. Porque também não é só sobre a nossa racialidade, protagonistas que são somente a própria raça ou o próprio gênero, é para que seja além disso.

[A] Quando pensei no conceito de nerdiandade, a primeira coisa que me veio à mente foi a experiência de ser espectadora de Buffy, a caçadora de vampiros, e perceber que ali não havia espaço para mim quando a Kendra morreu sem nenhuma razão específica, e tal. Havia outras caça vampiras que podiam conviver ou coexistir com a Buffy, mas essa, que era negra, não durou três episódios. Isso não foi uma questão para outras pessoas que eram diferentes de mim. Aquele conceito de “olhar opositivo”, da Bell Hooks, que definiu meu sentimento em relação às coisas, veio na experiência; conheci o conceito dela depois.

A nerdiandade, a meu ver, é uma forma de enxergar a cultura pop considerando o seu diálogo com o underground, também, porque quando pensei no Burning Hell, para trazer o metal, o hardcore e esses ritmos que são contestatórios, e que embora sejam cooptados pelo mainstream, na maior parte do tempo estão no submundo. Então, é importante pensarmos no mainstream, porque é por meio dele que conversamos com as pessoas. Se eu for falar sobre as referências underground, vou alcançar quantas pessoas? Mesmo com a internet e as nossas referências, encontraremos poucos denominadores comuns. Por isso acredito que o mainstream seja uma ferramenta muito importante, por chegar a qualquer lugar.

Os quadrinhos underground não alcançarão de Norte ao Sul do país, talvez cheguem de maneira muito dificultosa, mas os da Marvel chegam para todos. Por isso resolvi estudar isso e me jogar no mainstream. Parece que é uma forma de lidar com o fato de que “ele sempre venceu, e está ganhando”, mas na verdade o entendo como uma ferramenta de difusão e interpretação das ideias e dos pontos de vista.

É, também, uma contradição, parece paradoxal falar de feminismo negro, deste lugar, buscando emancipação a partir do discurso hegemônico e opressor, mas estamos aí, desse ponto de vista podemos chegar à CCXP [Comic Con Experience] e conversar sobre feminismo com pessoas que viram Capitã Marvel, tendo um fundo comum para falarmos sobre o problema do feminismo branco, por exemplo, tão grave e perigoso quanto a opressão de raça masculinista.

Se fossemos falar sobre as nossas referências underground as pessoas não iriam captar necessariamente. Além de ser muito importante considerarmos o mainstream, precisamos sempre estar em contato com o underground, com o conhecimento que está sendo produzido desde as margens, depois dos trilhos, porque é aí que nós temos o real potencial.

Não podemos nos enganar que uma empresa como a Marvel esteja preocupada em realmente implementar no mundo uma obra afrofuturista tal qual Pantera Negra. Gostamos muito e temos um problema muito sério de representatividade na cultura pop. O caminho comum é assistirmos um filme que tenha alguém que pareça conosco, nos identificarmos e buscarmos o lado positivo o tempo todo, mas precisamos pensar no rompimento discursivo que existe em potencial ali, e também em uma série de continuidades, nos porquês: por que isso foi criado, e por que isso diz o que diz? Por quê a revolução é o mal, e manter a tradição é o bem? Mas a tradição está atrelada à ONU, e a revolução também não é revolucionária porque é atrelada aos EUA?

Acabamos com um filme sem solução, irreal, sobre a liberdade e democracia da abolição para pessoas negras. Temos pessoas negras se matando em lados opostos, mas não uma solução real, nenhuma perspectiva de futuro.

A cultura pop, por mais que vista uma capa de “diferentona”, está servindo a um interesse muito específico. Não podemos ser inocentes de acharmos que é uma “nova Marvel”, porque isso já voltou a ser velha, inclusive. Nos quadrinhos, temos a Kamala Khan, uma personagem incrível, garota estadunidense cuja família é paquistanesa e, pela primeira vez na cultura pop, para mim, há a experiência de ver o Islã ser tratado de maneira totalmente “normal” e positiva, como fonte de sabedoria efetiva.

E a negociação da identidade, porque ela não é somente paquistanesa ou muçulmana, assim como ela também não é só estadunidense ou uma jovem que escreve fanfic e joga videogame. Ela é tudo isso, e essa totalidade concretizada por ela é muito importante. Não é apenas a minha identidade, mas consigo enxergar uma potência daquela experiência, que nunca tinha visto antes, é inspirador para mim.

Acho que entra muito no que falávamos sobre a reciprocidade e solidariedade; há muitos personagens negros que não necessariamente são positivos nos quadrinhos, mas a Kamala foi a primeira a ter destaque. Precisamos pensar em como temos a cultura pop como lugar onde conseguimos desenvolver esse afeto, pois quanto mais vemos esses personagens, mais nos conectamos com eles — por quê é mais fácil para a maioria das pessoas se conectarem e se identificarem com pessoas brancas? Ou acharem pessoas brancas bonitas? Porque elas estão ali.

O Shepherd [de Grey’s Anatomy] é horrível, mas em dezesseis temporadas ele está sendo mostrado como alguém bonito, e isso vai convencer as pessoas de que ele é uma pessoa bonita, de que ser bonito é aquilo. Somos muito educados para termos esse pensamento convencional, sermos direcionados para estas perspectivas, e a partir do momento em que conseguimos ter um diálogo de desnaturalização disso na cultura pop, que é o que fazemos no Preta Nerd, e que você faz com a Lótus, temos uma ferramenta, um paliativo, não um final.

O final seria termos nossas próprias vozes, dos nossos grupos sociais falando por si. A criadora da Kamala Khan é branca, então existe o interesse de fazer algo positivo, mas não um espaço para pessoas como a própria Kamala para escreverem sobre si mesmas. Mas também seria um problema se alguém com a aparência como a dela só pudessem escrever sobre como é ser Kamala. A cultura pop é um campo minado, para usar um termo antigo, mas ainda muito real.

[R] Me lembro da sua pesquisa de mestrado, cujo título me toca muito, “A fantasia deles sobre nós”, inclusive numa crítica ao mainstream, nunca tomando-o como dado, mas principalmente como ferramenta de novas estratégias, através do entendimento de qual é o olhar deles sobre nós. Nesse sentido, vindo de uma perspectiva própria, me lembro do início da Lótus — coletivo feminista asiático, que pensa nessas pautas asiáticas brasileiras, principalmente de mulheridades asiáticas brasileiras numa agenda feminista, e muito dos primeiros locais em que consegui observar a maneira como a mulher asiática é vista foi pela cultura pop e pelo mainstream, principalmente já fazendo críticas.

Nos filmes que me rodeavam, existia o termo “dragon lady”, que é aquela mulher asiática extremamente fetichizada, muitas vezes em um contexto orientalista, a “mulher asiática robô”, sem direito à própria humanidade, ou a “tiger mom”, mãe asiática severa que cria os filhos sob essa ótica da minoria modelo. E fico muito triste que, citando essas “categorias”, todas elas possuem nomes em inglês porque ainda não criamos nossa própria epistemologia — ou terminologia — asiática brasileira.

Em um momento em que a própria militância estava se construindo e se apoiando em estudos euroamericanos, ao mesmo passo em que, se for olhar para uma iconografia brasileira sobre representação desses corpos asiático brasileiros, é ainda pior, porque as referências são novelas como “Sol nascente”, que foi um ícone do desserviço a uma etnia, sem contar os casos que vão desde apropriação cultural até o “whitewashing”, que seria o fato de pessoas brancas interpretarem outras etnias e raças, roubando locais de fala e protagonismo, bem como alterando suas formas corporais para que tenham nosso fenótipo, o que é muito violento.

Esse processo de encarar a cultura pop em relação a “qual o olhar deles sobre mim”, sobre nós, foi interessante para criar estratégias, porque é um cenário que é dado, então é possível criar contra-argumentos, tanto para efetivar mudanças quanto para adicionar críticas. Estratégias que vão desde tomar este local de fala, no sentido de sermos as propositoras de nossas próprias narrativas, quanto de criticar o que já foi feito, porque às vezes parece que é uma coisa ou outra: criticamos ou produzimos o novo como conteúdo.

Portanto, a crítica precisa ser historicamente contínua, como forma de arquivamento de “coisas que não podem passar”, como Monteiro Lobato ter sido racista, por exemplo. Se vamos continuar com essa autoria e essas histórias sendo parte do nosso imaginário como brasileiros, que então permaneçamos por meio dessas críticas, que no fim são formas de situar realidades. E ao mesmo tempo, para que as obras futuras tenham parâmetro de relocalização, de pensar “olha, não é isso. Podemos ser aquilo”.

Considerando também que toda grande produção envolve muito capital, e isso traz muitos quereres em volta, principalmente uma vontade de mercado que sabe que terá retorno financeiro. Então, também sinto que trata-se de um terreno muito arenoso, mas que não adianta não o ultrapassarmos, porque se não encararmos este exercício da crítica, do diálogo, da discussão, da resenha — que é algo que você faz bastante -, é também perpetuar as coisas da maneira como estão.

Pensando nas minhas referências asiáticas, é muito louco, porque até então só citei aquilo que não é representativo de quem sou ou quero ser. Fiquei pensando em quais referências positivas asiáticas poderia trazer para essa conversa, e é muito triste entrar nessa compreensão de que essas representações que partem de um contexto de realidade são completamente escassas, tanto no sentido de quem é esse indivíduo, sua ancestralidade, ou mesmo de transbordamento de raça e gênero, pois essa também é uma questão, a criação desses protagonistas das suas próprias racialidades, mas não de suas subjetividades.

Com você citando o Derek Shepherd felizmente pude me lembrar de que, realmente, a Cristina Yang foi uma personagem importante pra mim, positivamente. Ela é a cardiologista em Grey’s Anatomy, pra quem ainda não começou a ver essa série. E trazia esse contexto de mulher asiática não submissa, subserviente, dócil, com senso de liderança, era mais do que ser agressiva, ela tinha uma potência de voz. E, mais do que a personalidade forte da Cristina, acho que o que fez diferença para mim foi o fato dela ter demonstrado que ser uma mulher racializada poderia ser algo a ser ambicionado, ao mesmo tempo trazendo maior representatividade, nutrindo a produção de repertório para a criação de novos imaginários.

Felizmente, a vida real traz personagens como a Awkwafina, rapper e atriz que tem pautado questões de representatividade em filmes mainstream, Madame Gandhi, cantora e rapper de ascendência indiana, e que também tem criado discursos importantes sobre sexualidade e afetividade sendo mulher lésbica racializada, enfim, tenho essas referências, muitas vezes da música. Queria te perguntar quais mais das suas referências te promoveram conexões e inspirações, principalmente.

[A] Tem muito disso que você comentou sobre a vida real, porque a ficção geralmente carrega uma carga que já estamos cansadas de ver. Já sabemos o background das personagens quando começa o filme por já termos visto essas cenas se repetirem tantas vezes. Quando você estava falando sobre as suas referências, fiquei pensando sobre as minhas, e atualmente acredito que personagens literários de ficção especulativa têm sido muito potentes para mim, principalmente as da Octavia Butler, Nora K. Jemisin, e é sempre um questionamento: por que é que também importamos tanta coisa?

Se pensamos em literatura brasileira a que temos acesso, de modo geral temos acesso à literatura realista, do ponto de vista das “coisas reais”, das leis naturais, por assim dizer. E isso também já conhecemos. Quando temos acesso a personagens femininas potentes e parecidas conosco, agentes transformadoras, há uma quebra enorme de paradigmas… A partir do momento em que li Kindred, ficou meio que praticamente inaceitável ler um romance com protagonista que não seja como a Dana, fisicamente, pelo menos. Vemos que são personagens compostas de maneira muito complexa, e que a racialidade é marcada como um fato, um dado que existe, obviamente, uma historicidade, mas que não reduz.

E que todos esses binarismos de bom e mau, bonito e feio, são borrados. Vemos que nas obras da Jemisin também temos protagonistas que estão passando por situações pós coloniais, no sentido metafórico, de contexto de fim de mundo, alguma situação traumática com as quais elas precisam lidar. Em Kindred, “A Parábola do Semeador”, a personagem principal está passando por situações com as quais conseguimos nos identificar, e que não retiram a humanidade, no sentido do “eu”, do indivíduo, do sujeito.

O ensaio “A obsessão positiva”, de Octavia Butler, é um texto incrível. Em “Mulheres, raça e classe”, Angela Davis pergunta de onde vem essa potência de feministas negras, ou de pessoas que estão em busca de justiça para o coletivo. Temos uma resposta na Octavia Butler, nesse ensaio que pode ser entendido como um desejo enorme e incontrolável de lutar pelas coisas que julgamos corretas e que sejam realmente o que queremos. Precisamos, então, transformar, ser agentes daquilo que acreditamos. Existe essa força muito grande em sua literatura, e na literatura de autoras negras de ficção especulativa.

São imagens que são, para mim, cada vez mais importantes. É claro que as heroínas negras dos quadrinhos mainstream da Marvel também foram, a imagem da Misty Knight e da Colleen Wing, das duas juntas, também fala muito sobre a solidariedade antirracista e, com todos os problemas que ambas as personagens têm, é uma imagem que nunca havia visto antes. É uma tropa feminista. E pensar na história das autoras… Quando comecei a ler sobre a vida e obra de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, todas essas autoras brasileiras, você vai vendo que essa história do fictício e do real também vão se quebrando.

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Matéria: “‘Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco’. É esta frase, simples e honesta, que abre o o romance Kindred — laços de sangue, de Octavia Estelle Butler. Conhecida como ‘a grande dama da ficção científica’, Butler foi a primeira autora mulher e negra a ganhar, ainda nos anos 1970, notoriedade no gênero que até hoje é predominantemente masculino — e branco.” — Matéria “A escrita em primeira pessoa de Octavia Butler”, por Helô D’angelo para a Revista Cult.

Yellow Ranger

[R] Chegamos ao último bloco deste primeiro episódio, agradeço muito pela sua presença desde já, estou com vontade que você retorne a este espaço e que a gente converse sobre muito mais assuntos e possamos transbordar nossas vivências e olhares sobre todas essas questões.

Com você também estreio este quadro que fecha o episódio e se chama “Yellow Ranger”, que vem com a vontade de conversar sobre representatividade, sobretudo a partir de indicações. Esse nome vem de um resgate que faço das minhas próprias referências, pensando em como a Ranger Amarela era uma personagem sempre colocada como coadjuvante, e as atrizes que a representavam — em sua maioria — eram mulheres racializadas. Ou seja, eu, como mulher racializada, nunca pude ser a Ranger Rosa, ao mesmo tempo em que, hoje, quero subverter o lugar da Ranger Amarela, porque acredito que não preciso mais ser a Rosa. Posso ser eu mesma, e subverter as expectativas através da experiência. É um nome que está em construção, peço até que enviem sugestões. Gostaria que o nome desse quadro fosse criado com vocês, que nos ouvem. Enfim, Anne, qual referência você pode deixar nesse fechamento?

[A] Já que falamos tanto sobre livros e teorias, vou sugerir um jogo multiplataforma chamado Dead by Daylight, de terror, que basicamente conta com vários sobreviventes e você pode escolher personagens de etnicidades e faixas etárias diferentes. Eles estão em uma arena lutando para sobreviver contra um assassino sobrenatural.

O interessante neste jogo é que o pilar é a empatia. Para sobreviver neste campo, você precisa estar conectado com outros jogadores, pois é um jogo online. Outras pessoas precisam observar onde você está, porque se o assassino estiver para te pegar, elas podem te salvar, você precisa pensar em uma estratégia que seja boa para todo mundo, que sirva para que todos sobrevivam e saiam da arena vivos. É um jogo que possui leis que regem o jogo e que obrigam as pessoas a agirem de forma empática.

Talvez as pessoas nem pensem sobre como isso funciona, porque é apenas uma mecânica do jogo. Muita gente escolhe a personagem negra porque ela tem poder de cura, por exemplo, então o jogo “te obriga” a escolher personagens que você não necessariamente escolheria se você não fizer parte do mesmo grupo identitário, e a ser empático. Quanto mais empatia, mais pontos você ganha, mas isso não é dado de maneira transparente, e acho isso muito produtivo.

E como estou falando sobre empatia, acho legal pensarmos nas Parábolas da Octavia Butler, a “A Parábola do Semeador” e “A Parábola dos Talentos”. A personagem principal de ambos é Lauren Olamina, negra, com uma aparência andrógina e práticas bissexuais ao longo da narrativa. Não é uma personagem que vemos em qualquer livro de ficção especulativa, e ela possui o que é considerado no universo do livro uma doença, chamada “hiper empatia”, uma forma diferente de se conectar com as pessoas, porque ela consegue compartilhar dor e prazer.

Num mundo distópico existe muito mais dor do que prazer, e à medida em que uma pessoa “bate”, recebe a mesma carga de dor, por exemplo, ela quer que o mundo seja melhor, com certeza. E será uma grande agente de mudança nessa realidade, o que nos traz a Angela Davis com a ideia de que quando a base — as mulheres negras -, se movem, todos se movem junto.

[R] A referência que quero trazer à nossa conversa, como uma homenagem ao nosso encontro, não tinha como não ser Grada Kilomba, por ser uma artista e teórica muito importante nos nossos encontros e primeiras conversas. Gostaria que todas as pessoas pudessem ter ido visitar a exposição Desobediências poéticas, que tivemos na Pinacoteca, em São Paulo, envolvendo trabalhos que a artista desenvolveu ao longo dos anos de sua produção e tem discutido nesses últimos meses. A exposição já acabou, mas acaba de ser lançada a versão traduzida de “Memórias da plantação” aqui no Brasil, na última FLIP [Festa Literária Internacional de Paraty].

Este livro foi muito importante para pensar em vários contextos enquanto corpo, quando a autora fala sobre a experiência como mulher negra, especialmente reivindicando este espaço como tal, e também indicando locais de racismo estrutural, histórico e social, que a população negra vivencia até hoje. Grada constrói o texto de forma tanto performática quanto poética e artística. Ainda, não deixa de ser uma crítica sociológica, porque não é sobre a arte pela arte, mas é uma produção artística que constrói uma forma de transformação social.

Este livro, para mim, apesar de ser bastante informativo na questão social, é muito performático e uma obra de arte. Pois é perceptível a performance daquelas teorias em movimento, é uma imagem, complementando em muito a experiência da exposição. Seria uma indicação complementar para quem foi à exposição, e para quem não pode ir mas precisa dessa referência, necessária para os tempos em que vivemos. O livro “Memórias da Plantação” pode tanto ser uma referência feminista, quanto principalmente um diálogo com sociedade e arte. É importante não invisibilizar este lugar que Grada constrói como artista multidisciplinar e decolonial.

Queria, nesse viés, indicar também o vídeo que você fez sobre o catálogo da exposição, pois sinto que foi uma crítica muito importante enquanto contextos de arte, curadoria e organização. Indico então a exposição, o livro e o seu vídeo para uma experiência completa do que foi essa passagem da Grada pelo Brasil, e como ela afeta e pode ser uma referência muito necessária para tempos presentes.

“Grada Kilomba é uma teórica e artista que trata de questões relacionadas à ferida colonial, políticas do espaço, e outros, a partir de um aporte teórico amplo, multidisciplinar (feminista negro, psicanálise, estudos da branquitude, teoria pós-colonial).” — Resenha publicada em Setembro/2019, no Preta, Nerd & Burning Hell.

Anne, novamente muito obrigada pela sua presença, por tudo que você nos compartilhou de sua própria pesquisa, visões e pensamentos. Aprendi muito, agradeço de verdade por esse momento juntas.

Para continuar aprendendo — Preta Nerd & Burning Hell está em:

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Peço que vocês nos enviem comentários e sugestões.

Vamos construindo juntes esse espaço!

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