Conversa com a artista transdisciplinar e parte do coletivo/marca Inserto, sobre identidade, beleza, e moda.
O texto abaixo é uma transcrição do EP. 012 • Cyshimi, primeira temporada “Novos imaginários, narrativas fundamentais”, da RAWR! Podcast!. O podcast está disponível no Anchor, Spotify, e diversos agregadores de áudio, escolha seu preferido e nos acompanhe!
[Rycca] Bem vindes à RAWR! Eu sou Rycca Lee, ativista, comunicadora e artista. Esse é um espaço de conversa e encontro, pensando na curadoria de conhecimento, narrativas e referências e, principalmente, é sobre pessoas incríveis que transbordam as suas experiências e compartilham conosco suas visões de mundo.
Nossa conversa de hoje será com a artista transdisciplinar e ativista Viviane Lee, seja muito bem vinde, amiga, muito obrigada pela sua presença e tempo. Você pode contar um pouco mais sobre você?
[Cyshimi] Oi gente, queria parabenizar esse projeto de vocês, estou muito feliz e honrada de estar participando, sou artista transdisciplinar, como a Rycca disse. Queria explicar um pouco melhor o que é isso. É uma compreensão de atuação em várias áreas como artista, ao mesmo tempo em que se vai muito além disso, questionando e puxando essas barreiras do que é uma arte e outra, até que não dê mais para identificá-las separadamente.
Tenho ascendência chinesa e taiwanesa, e há uns anos entrei para a Lótus, plataforma de feminismo asiático interseccional. Me formei em Moda, mas hoje trabalho como artista transdisciplinar, mesmo. Faço parte da Inserto, um coletivo/marca, de que vou falar melhor durante o episódio.

Identidade asiática
[R] Bom, vivemos tempos nos quais nossas identidades estão cada vez mais plurais e diversas. Em função dos avanços de todos os meios de comunicação, a própria globalização e a dita internet trazem à tona novas perspectivas, que no final não são realmente novas, mas são perspectivas que até então foram invisibilizadas. Acho que a gente está vivendo um levante pelo qual entendemos outros discursos e formas de existência, que acabam causando, para nós, mais a sensação de pertencimento.
Então, a proposta de hoje é sobre isso. Mas antes de pautar esses contextos de corpo, queria muito conversar mais com você sobre a sua construção de identidade: como e quais foram as vivências determinantes para a sua construção como pessoa? Enfim, se você puder contar um pouco mais sobre você, até sobre o que é ser asiática brasileira…
[C] Beleza. Quando penso nessas vivências que foram estruturais para mim, e que sempre estarão comigo, acho que as primeiras coisas são escola e Ensino Médio. Acho que, ao mesmo tempo em que estudei num colégio que tinha mais pessoas asiáticas brasileiras amarelas, todos os meus amigos eram brancos, e entendo, hoje, que ter aquilo e ser a única asiática naquele espaço era uma forma de resistir. Essa vivência no Ensino Médio foi muito determinante para mim porque por mais que ainda tivesse muitos privilégios, de crescer em uma escola em que o feminismo começou a ser pautado, ainda era uma das escolas mais opressoras em que passei.
Além de ter amigos que achava que estavam me acolhendo e na verdade eram só relações tóxicas, coisas como misoginia, machismo, racismo, gordofobia, transfobia, toda hora. Me silenciei muito nessa época, e isso tem muitos reflexos até hoje, porque nunca combati ou enfrentei essas pessoas, e eu entendo que esse silenciamento tem a ver com toda a minha performance atual.
[R] É muito louco como esse espaço da escola, do Ensino Fundamental, é um ambiente infelizmente ainda muito tóxico. Acho que para mim, infelizmente, foi esse o percurso. Compartilhando com você, ouvindo sua história, fui lembrando de várias coisas que vivenciei na minha vida, também. A escola foi esse espaço em que o processo de feminização do meu corpo foi o mais violento e tóxico, e hoje percebo como essa imposição de feminilidade tirou tanto da minha possibilidade de construção identitária.
Quando você entendeu que era asiática? E essa descoberta foi pacífica, ou foi um enfrentamento?
[C] Essa primeira pergunta que você fez, sobre as vivências que foram determinantes e mais marcantes… Foi muito dali que entendi o meu corpo e as relações, a racialidade, enfim. Quando era pequena, acho que nos meus sete a dez anos, minha família me obrigava a fazer aulas de mandarim todo domingo de manhã. Terrível, né? Imagina para uma criança, todo domingo ser obrigada a acordar cedo para estudar uma língua que é uma das mais complexas? E por mais que eu ainda fosse criança, me sentia mais estranha ainda, porque não me conectava com as pessoas chinesas, eu olhava para aquilo tudo, e para as coisas que eu consumia, TV, todas as coisas que vivemos e consumimos aqui no Brasil, e passava para essa outra realidade com várias pessoas imigrantes, com outras construções.
Eu chegava nesses lugares e pensava “ai não, gente, eu sou branca!”, “não quero ser como essas pessoas”, sabe? “Não quero ter esses costumes, eu não falo nem ando desse jeito”, “não gosto das coisas desse jeito”. Conforme todas essas outras vivências da escola e do Ensino Médio, fui entendendo que não era branca, por mais que eu quisesse ser. Sempre foi algo meio subentendido.
Ainda estou tentando entender essas coisas, minha mãe é chinesa e meu pai é taiwanês, mas não tenho mais contato com meu pai. As ações do meu pai com certeza também foram determinantes para eu não querer falar sobre essa ascendência, ou até mesmo para perguntar sobre a história dele, que nunca vou saber.
Na minha família, a gente também tinha reuniões todo domingo, todo mundo falando em mandarim, menos a geração dos filhos. Minha mãe tenta rejeitar um pouco esse lado chinês, porque acho que isso vem também da forma como a China é vista no Brasil. A China foi colocada em um lugar diferente dos outros países leste-asiáticos.
Ainda é complicado, por mais que seja considerada uma puta potência econômica, histórica e tudo o mais, ainda é muito colocada num lugar negativo, a ponto de haver repulsa com a própria cultura. Hoje em dia não falamos muito sobre isso, não temos recordações, quando pergunto para minha família sobre a história é difícil porque eles preferem não falar.
✦ As escolas como reprodutoras do racismo e o machismo | Geledés
✦ Feminismo asiático: identidade, raça e gênero | Rycca Lee @ Medium
[R] Nossa, Vivi, esse seu relato me lembrou muito um texto de uma jornalista que se chama Nikita Redkar, publicado no Everyday Feminism, uma plataforma sobre feminismo na Índia, que fala sobre “como a geração dela odeia apropriação cultural, mas os pais indianos amam”. Também lembrei da minha própria vivência em construção como asiática.
Nunca fui lida como branca, e muitas das minhas experiências foram definidas pela questão da racialidade. Mas como isso não era conversado na minha casa, eu não fazia ideia, só que sempre me senti “O Outro”, sabe? E entrando em contato com o feminismo asiático, com essas questões asiáticas-brasileiras, pude perceber que desde meus avós — que foram os migrantes de primeira geração e saíram de onde eram nacionais para virem ao Brasil buscando perspectiva de melhoria de vida — , no momento em que chegaram aqui, já houve o entendimento de que, para existir nessa sociedade, teria que ser através da assimilação.
E a assimilação seria negar tudo o que aconteceu nessa “vida anterior” em outro país, e assumir uma nova perspectiva. Tais nações hegemônicas, quando se é migrante, te impõem uma conduta dita como melhor em relação à sua: que é colonizada, e que de certa forma será colocada como “suja”, “exótica”, “alheia”, “estranha” ou “diferente”. E daí percebo meu pai não querendo me ensinar mandarim dizendo “isso não vai te ajudar em nada na sua vida”. Lembro da minha avó só me contando da experiência dela no navio muito tempo depois, assim, depois de mais de cinquenta anos morando no Brasil. Então, o que percebo é como nossos familiares tiveram que abdicar de toda a sua ancestralidade e herança cultural para poder vivenciar a realidade brasileira.
Minha visão sobre essa diferença, é exatamente como o hibridismo acontece quando não precisamos abrir mão de nada, e a gente só se constrói em camadas. Também me lembra muito o TED da Taiye Selasi, quando ela fala “não me pergunte de onde eu venho, me pergunte onde sou local”. Acho que tanto as localidades, quanto os territórios nos nossos corpos, e aqueles em que caminhamos, constroem nossas identidades: e isso é o hibridismo. Isso é globalização. E isso é algo que não podemos parar.
Agora, a apropriação cultural é algo que vejo ainda acontecer nessa tomada colonial, de subjugação e apropriação de uma cultura dita como alheia; que orna muito melhor na branquitude, mas se pessoas racializadas usam estes mesmos itens como uma comemoração às suas ancestralidades, isso é colocado como errado.
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Gênero
[R] Chegando na discussão sobre identidade e sociedade, queria muito te perguntar, Vivi: como ser asiática afetou a sua construção de gênero?
[C] Não tenho um pronome definido ainda, pode ser neutro, ele/ela. O que sei é que tenho muita passabilidade cis, mas nesses tempos percebi e entendi muito o que é essa identidade de gênero, o que é performance, e ultimamente venho resgatando uma performance de feminilidade. Sei como isso pode ser opressor para muitas pessoas, mas acho que essa feminilidade ainda é tida como superficial, supérflua, fútil. E acho que estou tentando entender esses espaços, porque no final é só uma performance.
E se você, sei lá, curte maquiagem e quer se aprofundar nisso, mas é vista como mulher cis, você ainda é colocada em um lugar específico: de ser fútil. E entender essas performances e me reconectar com essas práticas ditas “femininas” está sendo muito importante para mim.
[R] É muito louco e perigoso como as tecnologias hegemônicas vão se atualizando, porque é como começamos a conversa, falando que a gente está nesse momento muito plural, no qual há o levante de diversas narrativas e identidades que até então foram invisibilizadas historicamente, ao mesmo tempo, não é um espaço dado, e é óbvio que ainda não chegamos em nenhum lugar, mas mesmo o que é conquistado temos que constantemente reavaliar e refletir sobre.
Eu percebia como conseguia sofrer menos preconceito racial se eu fosse ultrafeminina. E sinto que essas cobranças são muito latentes, e enfim, como Kimberlé Crenshaw diz, na teoria da interseccionalidade, assim como todas as mulheres negras feministas também cunham ao longo da história, as opressões também habitam em conexões. Então, como assim você é uma pessoa racializada e não quer assumir sua feminilidade? Não quer assumir sua performance do “feminino”?? É um revés para a sociedade.
E olha, eu também entendo o que você fala, pois por exemplo, amo maquiagem. Mas muitas vezes fico pensando “o que será que a maquiagem significa pra mim?”. Também é muito difícil não poder usar maquiagem, porque “preciso comprovar algum outro tipo de estereótipo”. No final, só queria que a minha construção corpórea, de identidade imagética, cumprisse a minha expectativa, e não a do outro.
O que eu vejo, desses olhares da sociedade, é que são inseguranças das pessoas que veem nas nossas imagens coisas de que elas não dão conta. E de repente, me percebo tendo que me proteger, de não sair de sair de casa de x jeitos, para que outres à minha volta não se sintam inseguros. Mas deveria ser sobre eu construir minha própria imagem para me sentir segura. Sobre quem eu sou.

[C] Amiga, total. E assim, o que o outro pensa é muito maluco. É aquela história, você tem que ser feminina para ser mais aceita e tudo o mais. Acho que com a visão que tenho agora, pesquisando todas essas figuras e estereótipos do que é ser feminino, está sendo muito importante. Porque é com outro olhar, sabe? Quando vejo que aquilo é só uma performance, algo que posso vestir e tirar, enfim, não sei, se tornou tudo mais leve para mim, não mais uma obrigação.
Às vezes quero ser extra, extra, extra feminina, a ponto de ficar super estranho, e isso também é para mim. Não é algo que tenha de julgar se quero ser ou não.
[R] Totalmente. Inclusive acho muito importante pautarmos isso de ressignificar performances através do que a gente realmente quer, e me lembra muito o trabalho de Victoria Sin, pessoa não binária, artiste e drag queen, que na vida cotidiana é essa pessoa que tem uma performance de gênero neutro, e como drag queen expõe um corpo, uma identidade e uma performance completamente femininos.
E o que Victoria fala é exatamente sobre como a feminilidade, em sociedade, ainda é um espaço de subjugação, de falta de força, de vulnerabilidade. E sobre como muitas vezes escondemos e não comemoramos nossos corpos, porque Victoria constrói esse corpo que tem muito peito, muita bunda e muita coxa, ou seja, escondemos nossos corpos por medo da hiperssexualização. É muito bonito como sua obra traz exatamente esses dois mundos, e tanto no cotidiano como na arte há questionamentos.
[C] É, então, Victoria tem uma obra em que pega os lenços umedecidos para tirar a maquiagem, e se coloca como obra, porque nos lenços ficam impressos seu rosto com a maquiagem feita. E é muito foda, porque é isso, algo que se tira e coloca, tira e coloca. E deixar isso como obra, para mim é muito ref, é muito bafo.
[R] E ainda sinto que o trabalho dile é muito importante para nós, até pelo fato de ser ume artiste sinoamericane, uma pessoa de ascendência chinesa, que também tem trazido em sua obra questões de ancestralidade, migração e memória como pessoa chinesa.
✦ Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade | Judith Butler @ Amazon
✦ How Drag Artist Victoria Sin is Taking over the Art World | AnOther Magazine
✦ Victoria Sin: “I’m trying to break down the binary of thinking and feeling” | Sleek Mag
✦ Queer Chinese Art and Performance in a Time of Viral Contagion | Cuntepomporary
✦ Beautiful photographs of queer Asian communities in Hong Kong and NYC | Dazed & Confused


Arte e criatividade
[R] Bom, amiga, agora entrando num espaço para falarmos sobre arte, moda e como essas áreas estão totalmente conectadas com a questão de identidade… Mas antes de falarmos propriamente sobre arte, queria saber qual é sua relação com a criatividade, e quando você entendeu que isso pode ser uma plataforma para sua expressão.
[C] Existe um ideal do que é criatividade, né? Mas acho que no final das contas criatividade é só uma construção. Não sou criativa toda hora, na verdade muitas vezes sou apenas muito pragmática. Acho que a criatividade vem muito da disrupção, e de não se conformar, então acaba sendo óbvio criar algo novo, e inovar. Porque se você não concorda com o que existe agora, você acaba tendo que ser criativo.
Não tenho esse ideal de criatividade, de ser criativa o tempo todo. Ser criativo também é uma construção, existem métodos para ser criativo. Como comentei no começo, me formei em Moda, e foi lá que percebi que não quero trabalhar só com roupas. Acho que, no fim das contas, arte e moda são mercados muito diferentes, mas arte possibilita mais linguagens, e isso é o que me encanta, e por isso estou pensando nesse mercado de arte.
Quando me formei, já estava assim, “não quero fazer um TCC que seja editorial de moda, ou criar uma revista, ou fazer uma coleção”, são coisas que posso fazer fora daqui, que são meio que dadas, e não sei se quero, de novo, ficar pensando só em roupa e coisas vestíveis, pano… Quero ir para outros lugares.
No fim, identidade, corpo, beleza, ancestralidade, todas essas questões que fazem parte do meu trabalho não conseguem existir somente na forma de roupa, sabe? Elas têm que ser além disso, e tenho vontade de criar além disso. Quero comunicar de outras formas. Então, entender a arte como plataforma vem muito da pluralidade de linguagens dentro da própria arte.
[R] Muitas pessoas te conhecem como Viviane, mas muitas também te reconhecem como Cyshimi. O que é esse nome? É artístico, ou é muito mais, como parte dessa identidade…?
[C] Então, quando às vezes escrevo e coloco meu nome, é Viviane Lee / Cyshimi, meio como se fosse um ou outro… Cyshimi acaba sendo um nome artístico, as pessoas podem me chamar disso, não tenho problema com isso. Ele surgiu quando eu tinha um antigo nome (no Instagram até) de Blinkerbell182, porque já fui muito fã de Blink-182, e queria mudar de nome. Um dia, fazendo brainstorm de coisas e nomes, cheguei nesse.
Cyshimi é junção de “cyber” e “sashimi”. Tenho essa questão com o cibernético, de viver muito na internet e entender como isso nos molda, faz parte da minha produção. E o sashimi é um símbolo de culinária amarela, mais especificamente do Japão. Lembro que tive algumas questões em relação a isso por causa da minha ascendência chinesa, mas existe uma história de luta, guerra, opressão e hegemonia do Japão sobre a China, e é sobre me apropriar disso nesse momento.
O sashimi representa essa culinária, pensando também em como as culinárias são tão simbólicas para as culturas asiáticas no geral, e como isso é muito base do nosso acolhimento, pertencimento em comunidade. Cyshimi é representado por um pendrive de sashimi, que simboliza esse armazenamento e arquivamento de dessas memórias, de ancestralidade, representada pela comida.
✦ Primeira Guerra Sino-Japonesa | Wikipedia
✦ Segunda Guerra Sino-Japonesa | Wikipedia
✦ “Sobre memória, alimento e afeto”, por Caroline Ricca Lee | Selo Pólvora
[R] Eu acredito em você sendo uma das artistas mais importantes da nossa geração. E uma das únicas que pauta esses contextos de etnoracialidade, de memória, corpo e identidade asiática, de uma forma realmente contestadora e não orientalista ou fetichizadora — porque acho que exista também esse viés de arte asiática, principalmente no Brasil. Mas você, através da arte, contesta esses lugares. Se você puder contar um pouco mais sobre o que é o “IdentidadesImportadasCompactadasDemarcadas.Zip”…
[C] Me formei em Moda mas sempre tive esse ideal de que não era só sobre roupa, e queria falar sobre muitas linguagens. E outra coisa que sempre tive em mente é que precisava (não só queria), falar sobre identidade, sobretudo identidades asiáticas brasileiras, pensando também que meu corpo é um corpo amarelo. Sabendo que o feminismo asiático e o ativismo desse movimento está falando tanto de pessoas amarelas quanto de pessoas marrons.
Quando quis falar sobre identidade, era sobre entender que é como se fosse um 0.0 de qualquer pessoa, sabe? Um entendimento básico. Por mais que isso pareça ser óbvio, eu queria mostrar que isso é plural. Uma das coisas mais latentes no que é dito sobre a gente é que somos iguais, e isso é muito maluco, porque é tão óbvio que não é. Mas a gente cresce com isso.
Queria falar sobre pluralidade, também entendendo que estou falando sobre asiáticos-brasileiros, não só sobre asiáticos, nem só sobre brasileiros. Esse lugar existe, e sei que estamos criando nossas próprias referências aqui, estamos sendo a vanguarda. É entender esse lugar sobre o que é ser brasileire e as relações raciais e de classe que existem aqui.
As referências desse ativismo asiático-brasileiro, do feminismo e de muitas das lutas é norte-americana ou europeia. E quando falamos sobre Brasil, tudo muda. Quis pautar isso porque as pessoas asiáticas norte-americanas nem sabem que a gente existe, ou que estamos pautando sobre isso. A gente tem que criar as nossas próprias referências.
O projeto “IdentidadesImportadasCompactadasDemarcadas.Zip” envolveu uma instalação com quatro obras, várias linguagens, desde vídeo VR, performance, desenvolvido para rever identidades e dar vozes para outras pessoas. Uma das obras era composta por vários adesivos no chão, cada um com uma estampa, e através da Realidade aumentada, aparecia um áudio no celular da pessoa contando sobre cada estampa. Eram 12 estampas e 12 pessoas diferentes falando sobre as estampas, e a relação disso com a vivência delas.
Tinha outra obra que era um WhatsApp online, basicamente o meu computador aberto para as pessoas interagirem, e nesse computador tinha uma conversa comigo mesma, dentro da qual coloquei todas as referências do processo de construção dessa exposição e instalação.
Porque para mim, o processo é sempre uma obra, a pesquisa é uma obra. Ao mesmo tempo, como é que vou falar sobre identidade asiática-brasileira a partir de um pensamento que as pessoas não possuem repertório? Quis mostrar um pouco desse processo e do repertório, e isso ser uma obra interativa foi muito essencial para a caminhada da exposição, num geral.
A terceira obra se chama “Cosplay de mim mesma”, basicamente um vídeo VR em que estou conversando comigo mesma novamente, deitada numa cama, nessa representação do que seria um quarto, e eu apareço quatro vezes, me vestindo. Todas as vezes em que me visto, o qipao está presente, exatamente para retomar essa ancestralidade do vestido chinês, da mesma forma como me visto todos os dias, do styling que faço todos os dias. É sobre introduzir esse elemento tradicional num contexto brasileiro e ao mesmo tempo questionar o que é ser “cosplay de mim mesma”. Por que somos sempre associados a isso? E daí a pessoa usa o óculos e deita na mesma cama em que estou deitada no vídeo.
A quarta obra é uma performance [“Sem título”], em que havia duas pessoas comigo, estamos vestidas com segundas peles, como se fosse uma meia calça com as estampas do projeto em si, também presentes nos adesivos. E eu entro na performance toda coberta em fita crepe. Decidi usar esse material porque existe uma prática denominada Yellow face, que é quando pessoas brancas utilizam desse material para puxarem os olhos e “serem pessoas amarelas”, isto é, performarem essa identidade racial.
Quis pegar esse material e deslocá-lo desse contexto racista para colocá-lo nesse outro, antirracista. Enquanto estava toda vestida de fita crepe branca, o que também simboliza a branquitude, as outras pessoas vestidas com essa segunda pele estampada iam retirando a fita crepe de mim e, no fim da performance, visto as mesmas peles que elas. Acho que é contar sobre esse percorrer que é: beleza, a gente se entendia como brancos, e conforme o tempo vai passando, a gente “tira essa pele” e veste outra, que também remete a vestir esse peso de não se olhar mais como branco. Porque às vezes as pessoas acham que, nossa, agora entendemos nossa identidade racial. Mas não, existem muitas questões a serem resolvidas ainda. Muitos problemas, sabe? Coisas a serem pautadas. E isso é representado pelas segundas peles estampadas.



[R] Nossa, Vivi, eu pude ter o privilégio de ver a exposição ao vivo, e ouvir sobre ela novamente reforçou a experiência e, principalmente, também me senti imersa nesse universo que você criou. Essa obra é necessária, e mesmo depois de dois anos, ainda é muito contemporânea. É muito bonito ver como, ao longo do tempo, sua obra tem caminhado em direcionamentos que pautam ancestralidade e etnia. Se você puder contar um pouco mais sobre essa obra que está em andamento, o 1212 qipao [1212 — Sorteio de Qipao com intervenção de estamparia].
[C] O nome do projeto é 1212 porque são doze qipaos sorteados durante doze meses do ano de 2020. Uma pessoa vai ser sorteada a cada mês, e em conjunto comigo vai encontrar esse qipao, seja por herança da família ou se formos garimpar, comprar, ou estampar. Todas as pessoas, independentes do gênero, precisarão ter ascendência chinesa. É um sorteio porque é em aberto, para que as pessoas interajam, criem a obra comigo, e colaborem. E a estamparia tem parte essencial nessa obra porque é sobre rever o qipao. A estampa é algo que marca e modifica, o projeto também é sobre marcar essa contemporaneidade que vivemos, e para mim isso é muito importante. É sobre resgatar o passado e falarmos disso. Estamos pesquisando tudo isso.
O que isso tem a ver, de fato, com o hoje? Como a pessoa se sente vestindo esse qipao que também tem muitas marcas, e que também é muito demarcado por uma história de hiperssexualização do corpo feminino, e pelas pessoas brancas que se apropriaram desse elemento? E como lidar com tudo isso de forma contemporânea, reinventando esse qipao?
Acho que uma das coisas que mais gosto no projeto é o fato dele ter uma longa duração, então não importa o que eu estiver fazendo, serei obrigada a manter essa promessa que fiz no sorteio de doze qipaos, e todo dia 12 de todos os meses as pessoas sorteadas serão anunciadas. Cada uma delas terá histórias diferentes, com resultados e processos diferentes. Essa troca que terei com a pessoa, por mais que sejam apenas doze, ainda parece irreal, porque quantas pessoas chinesas fazem parte da minha vida hoje em dia?
Para mim, é muito importante essa longa duração para enfatizar o processo, a interação dessa pessoa comigo, e a forma como vamos crescer e mudar. A inscrição acontece no Instagram, e a única coisa que você precisa fazer é responder o comentário do post, do story ou do IGTV no meu perfil. Basta informar seu nome, idade, cidade e estado, e qual sua relação com o qipao.
[R] Estamos vivendo uma época, como falamos um pouco, em que o mercado está em fervorosa com questões de diversidade. Acho que trazer esses pensamentos de vanguarda para a moda é muito importante, porque no final a roupa conta a história da nossa sociedade sem nada ser dito. Ao mesmo tempo, sempre lembro do estilista Aurélio Alvez, que fez a coleção “111/ Desobediência Civil Negra: moda como representação iconográfica e ativismo micropolítico”, no qual ele estudou o texto “Desobediência civil” de Thoreau, e aplicou na moda, questionando como ela não pode ser revolução, pois está completamente atrelada ao consumo, ao sistema, ao produto. Mas a moda pode ser desobediência, um levante contra o status quo.
A coleção dele falava sobre o genocídio negro afrobrasileiro, a repressão policial e o regime de cárcere pautado pela raça no Brasil. E o estilista articula a roupa como ferramenta deste protesto. Acho que foi uma das coleções mais incríveis e necessárias de serem vistas até hoje. Sei que existem reflexões muito políticas na forma como se encara roupa. Queria te perguntar qual é sua relação com as roupas, com a moda. Existe diferença entre roupa e moda?
[C] Tem, existe esse mercado de moda e tudo o mais, mas a forma como enxergo a roupa hoje é nada mais nada menos do que um suporte. É uma via. Ao mesmo tempo é uma super forma de expressão, uma segunda pele. Mas também é uma prisão para muitos corpos, e acho que existe um mito de que você consegue se expressar, mas no final das contas o mercado de moda é muito “quadrado”, e absolutamente tudo que é estrutural se atualiza.
Como a moda é muito atrelada ao consumo e ao mercado, faz com que se impossibilite que boa parte dos criadores realmente faça algo revolucionário. O capitalismo coloca essas barreiras, parece que às vezes você não sabe para onde ir, mesmo. Por mais que você saiba onde quer chegar, não é possível achar um meio de como fazer as coisas acontecerem. E isso não é pra fazer a gente parar, é sobre entender que isso também não é uma coisa particular e faz parte de um sistema.
[R] Puxando o gancho, queria te perguntar como você se sente dentro do mercado hoje, sendo essa criadore de vanguarda precisando pagar boleto, ganhar dinheiro.
[C] O mercado de moda é muito complicado, porque realmente não existe espaço pra gente, é um mito, mesmo. Sei que as pessoas que estão lá fazendo algo um pouco mais alternativo precisam seguir certos padrões, inclusive estéticos. Hoje, o mercado de moda encontra uma grande crise quando temos tão poucas mídias, porque isso significa ter poucas janelas, e isso é entender que o que você faz não vai ser passado para a frente.
Estar no mercado hoje é estar muito sozinho. É não contar com o mercado, na real, e entender que você vai precisar empreender mais ainda, até na forma como se comunica, não só em como você faz. Porque se as mídias de moda não estão nos pautando, é porque não existimos. Ou, quando estão pautando de forma errada, também estão invalidando as coisas que fazemos.
✦ Making Cheongsams At 25 Years Old: Hu Ruixian | ZULA Features
[R] E Vivi, o que é a Inserto?
[C] Diria que é um coletivo de arte e design, em que usamos estamparia como principal suporte. A Inserto é com “s”, é bom comentar, porque o nome em si veio dessa questão do que não é certo, do incerto, mesmo, mas também da palavra “insert”, que é uma tecla de computador para inserir imagens, muito nessa ideia de inserir estampas e elementos. Já desfilamos três vezes na Casa de Criadores, utilizamos muito o upcycling no nosso processo, customizando peças que muitas vezes seriam jogadas no lixo.
Como disse, nunca tive uma relação muito forte com costura e criar coisas novas. Acho que é sempre esse olhar de “nossa, já existe tanta coisa produzida e feita, como podemos rever e reolhar tudo isso?”. A Inserto não tem uma linguagem só de moda, a gente está no mercado (vendendo roupas), na Casa de Criadores (desfilando), mas a Inserto tem uma linguagem plural. Pode ser um projeto gráfico, uma instalação, uma performance, enfim, abarca diversos suportes.
Falamos que estamos marcando através da estampa o hoje, e temos essa frase: “hoje, mais do que nunca”, pois não queremos falar de um passado que já aconteceu, nem de um futuro que ainda não aconteceu, um futuro abstrato, quando temos muito pra falar sobre o hoje. Na moda e no mercado de moda existe muito um conceito de “atemporal”, mas isso não existe. Tudo que a gente faz marca o tempo. Eu nem gosto de pensar em uma coleção atemporal, porque o atemporal é o quê? Uma coleção minimalista?
No fim das contas, o mercado ainda tem um espaço muito grande para o que é limpo, higienizado, minimalista, e as mídias de moda também estão sempre reverberando essas estéticas e lugares, essas formas de se fazer e construir uma coleção ou fazer um desfile, sendo que existem muitas outras possibilidades. Quando não estamos nas mídias, é como se a gente não existisse.


Beleza
[R] E Vivi, além da sua pesquisa pensando vestuário, moda e arte, também acho incrível sua pesquisa sobre beleza. Queria entender o que é beleza, para você?
[C] Beleza é identidade, é estética, obviamente, performance, e também ritual. São plurais as formas de se adornar e se pensar sobre essa questão de beleza em muitas culturas diferentes. É muito maluco, porque quando falo disso, estamos pensando em rosto, cabelo, sendo que isso é uma forma eurocêntrica de pensar e dar lugar ao rosto, que é onde está o cérebro, a questão do racional, enquanto existem muitos outros lugares para se dar valor e se pensar sobre.
Quando revejo todas as histórias, referências e estudos que tenho feito sobre isso, entendo que a unha é nada mais nada menos do que resistência. É uma das minhas principais pesquisas hoje. Isso surgiu há alguns anos, lembro bem que no Ensino Médio eu cheguei para uma amiga e falei “nossa, preciso muito cortar as minhas unhas, porque elas estão horríveis”, e ela disse “mas você sempre deixa a unha grande”, e eu me senti ofendida e depois fiquei pensando. Foi muito engraçado, porque tudo mudou depois disso, sempre deixei a unha crescer e fiquei pensando em qual era o problema disso.
Acho lindo e, no fim das contas, eu mesma estava me inibindo. Desde então, a minha relação com as unhas foi sempre de deixá-las crescerem e quebrarem, e continuar com elas do jeito que estavam. Para mim, a unha nunca tinha que ser feita: a cutícula, ou não ir além da borda do dedo, não tinha isso de todas terem que ser do mesmo tamanho e formato. Isso mudou muito quando eu mesma comecei a ir atrás desse material, e a cuidar das unhas por conta própria.
Hoje em dia estou praticando alongamento, mas não para que a unha fique simplesmente grande, como já conhecemos, mas para entender que se trata de um material. A unha, para mim, é um suporte, tanto quanto amanhã posso estar fazendo uso do vídeo. Depois de amanhã posso estar falando só sobre unhas, e no dia seguinte, posso querer fazer uma tela. É um suporte. O que acho foda da unha é como isso molda tudo na sua vida e na dos outros à sua volta.
Para se ter uma unha grande, é uma dedicação, você muda seu estilo de vida, porque é uma ferramenta à mão, literalmente. É entender que você vai ter que mudar tudo para se adaptar a isso. Acho que essa mudança de ritual no cotidiano e de performance é o que acho tão incrível. Existe uma referência muito importante, a Flo-Jo, uma atleta de corrida estadunidense.
A prática de esportes nos Estados Unidos é algo supervalorizado, existe toda uma questão de vencer, meritocracia, mas dentro desses esportes existia essa mulher negra com unhas muito compridas, de 5 cm para mais. Imagina? Obviamente ela era muito criticada por isso, porque suas unhas eram super adornadas, e isso era uma forma de resistência para ela e para a sua comunidade.
A Flo-Jo é um símbolo eterno para as unhas, de como ela, uma mulher nos Estados Unidos, um país super racista, e dentro do ambiente do esporte, que também é super misógino, racista e normativo, resistiu através das unhas, em prol de sua comunidade e cultura. Num lugar em que isso era totalmente absurdo, e negado. Enfim, as unhas são uma prática muito periférica, também. Porque o salão de beleza também existe principalmente no mercado periférico, e essa construção das unhas é muito importante para esse mercado e essas mulheres periféricas e negras. Elas precisam ter o seu lugar, como protagonistas, nesse movimento.
Outro exemplo é um grupo de mulheres nos Estados Unidos, que se chama “long nail goddesses”. Elas têm unhas que geralmente começam com 10 cm. É um grupo criado por uma mulher trans, inclusive. Acho essa comunidade muito interessante porque existem histórias de vida, lá, que mudaram completamente por causa das unhas. Pessoas que passaram por vícios em drogas e se encontraram no cuidado e ritual das unhas, no adorno delas. Essas mulheres passaram por questões de vida muito pesadas através das unhas, e não só isso, se relacionaram com outras mulheres à sua volta e criaram um senso de comunidade.
Tem outra referência que são pessoas que atingiram o recorde mundial de maiores unhas. Elas têm uma frase que parece muito simples falando agora, mas que quando ouvi pela primeira vez entendi, de fato, o que era aquilo. Essas pessoas que possuem unhas de, às vezes, 30 cm de comprimento — o que de fato muda toda a vida delas — um dia disseram que ter unhas tão compridas era importante de ser midiatizado e falado, porque isso celebrava a diferença.
Quando ouvi isso pela primeira vez, fiquei “nossa, gente”. Estamos falando sobre corpo, diferentes corpos, é muito maluco como achamos que só existe um jeito de existir. Como alguém chega ao ponto de ter uma unha de 30 cm e isso mudar tudo na vida dela? Como essa pessoa dorme? Como ela cozinha? Coisas muito básicas da nossa vida. Essa pessoa está disposta a fazer isso em nome dessa existência. Construímos um mundo tão padronizado que até a forma como cozinhamos é delimitada, as casas são quadradas, as portas são quadradas, por que tudo que conhecemos do mundo é como é, e não de outro jeito?
Enxergo muito a unha como esse lugar de celebrar a diferença, o corpo, as pluralidades, e outras formas de se pensar, refazer, enfim. Ao mesmo tempo em que ela é uma escultura performática, e vai estar presa ao seu corpo, mas você pode modificá-la. Acaba sendo uma super forma de expressão, a unha é uma galeria. Cada unha é um cubo branco, uma forma nova de se explorar materiais e estéticas, para se expressar, mesmo. No senso comum, a unha é colocada num lugar de sermos obedientes, então precisamos ter as unhas feitas, algo ligado a uma questão de gênero, enquanto que, quando comprida ou “estranha”, ela é tida como poluída, “unha de bruxa”, de “Zé do Caixão”. E eu acho incrível ter essas referências do que é considerado ruim e do que é considerado bom, porque é sobre brincar com tudo isso.
Lembro da primeira vez que fiz as unhas num salão, de forma super estruturada, toda neon e cheia de acessórios, joias. Quando saí na rua, aquilo mudou muito toda a minha vida. A forma como pratico as minhas coisas no dia a dia, e também como as pessoas interagem comigo. Quando eu estava no metrô, juro, não tinha uma vez que alguém deixava de olhar. Tinha uma performance das pessoas de às vezes tirar fotos de longe. Eu via as pessoas fazendo isso, ou ouvia comentários de pessoas que estavam na minha frente com a amiga do lado. Em voz alta, na minha frente. Às vezes as pessoas acham tão absurdo que começam a xingar, ou falar que é unha de bruxa, e eu achava engraçado. Ou diziam “nossa, como ela consegue? Eu nunca conseguiria”. É uma performance, mesmo.
E a história da unha é muito presente na história Chinesa, pois muitas imperatrizes usavam essas unhas em formatos grandes e adornados, geralmente em forma de cone e douradas, para se destacarem social e hierarquicamente. É como se fosse um símbolo de que elas não colocavam as mãos para trabalhar. Aquilo era um símbolo de classe. Também queria comentar sobre um acontecimento dos Estados Unidos numa escola, em que foi proibido que as meninas tivessem alongamento de unhas. Só para vocês entenderem a proporção disso.
[R] Essa reflexão que você está trazendo é tão importante, porque sinto que estamos nesse momento de falar sobre uma beleza decolonial. Uma beleza que pode se dar através da diferença, uma beleza diversa. Mas muito da representação dessa beleza ainda está estática. Não pensamos nessa beleza em movimento. E sendo esta uma pauta muito colocada a pessoas, corpos e identidades que se reconhecem como mulheres, talvez essa beleza estática que o mercado muitas vezes comemora seja para ainda nos colocar em locais de subserviência.
[C] Total.
[R] Em locais de paralisia. E quando você vem com essas questões, fico pensando em como beleza tem a ver com movimento, pulsão de vida, cotidiano, e como normatizamos os movimentos dos nossos corpos em sociedade. São várias camadas que precisamos desconstruir, vários contextos colocados como “normais” a serem desconstruídos. E tudo tem um viés comum de liberdade na maneira como queremos nos movimentar, ser e viver. No final, a vida é em movimento.
✦ The Illustrated History Of Nail Art | Refinery 29
✦ This Cult Nail Artist Has the World at Her Fingertips | Broadly
✦ Nail Art Is Bigger Than Ever — So Why Aren’t Black Women Getting Any Credit? | Refinery 29


Yellow Ranger
[R] Bom, chegamos ao último quadro, infelizmente. Poderíamos ficar aqui discutindo sobre muitos assuntos necessários, pois enfim, sua visão sobre tudo isso é muito incrível! Já te agradeço por essa presença.
Esse último quadro se chama “Yellow Ranger contra ataca”, porque além de ser essa personagem dos Power Rangers, ela dá nome a uma música da cantora americana de ascendência sinocoreana Awkwafina, sobre ser asiática. Também é um quadrinho sobre ancestralidade e representatividade da artista Shing Yin Khor. Essas duas artistas me inspiraram a nomear esse último quadro da RAWR!, que é sobre referências, indicações e resenhas. Queria ouvir quais são as referências que você trouxe para partilhar com a gente.
[C] Duas referências de artistas asiáticas, para variar, e que me inspiram muito, são a Ada Chen, artista sinoamericana, formada em Design de Produtos e Joias, que também é um mercado infinito. Ela me surpreendeu muito na forma como suas joias foram feitas, porque cada uma delas gera uma imagem e fala sobre uma vivência própria como sinoamericana. Um desses exemplos é um brinco de uma conversa de WhatsApp, que inclusive foi referência pro meu próprio trabalho.
É uma conversa constrangedora dela com uma amiga asiática amarela, e com uma pessoa branca, que fala justamente sobre racialidade. É muito foda como ela pega algo cotidiano para fazer uma super crítica social, colocando isso num objeto vestível e performático. Outro exemplo de uma obra dela é um suporte de shampoo. Ela corta seu próprio cabelo, que coloca nesse suporte, dizendo “este é um pote de cabelo que você pode ter na sua casa, mas não se esqueça de agradecer à colonização por valorizar e fetichizar esse tipo de cabelo de mulheres amarelas”.


Minha segunda referência é uma plataforma que existe no Instagram, South-Asian Beauty, basicamente uma curadoria de uma artista marrom chamada Sanam Sindhi, artista muito foda e conhecida por participar do clipe “Bitch better have my money”, da Rihanna. Nesse projeto, ela traz imagens de pessoas marrons, mais especificamente do Sul Asiático, e está resgatando essas referências de pessoas sul-asiáticas que não existem no nosso imaginário contemporâneo. Toda uma questão de adornamento, que é muito foda, e ela estuda tudo isso, coloca para o público, e não só, ela criou um filtro no Instagram para meninas e pessoas sul-asiáticas usarem, com piercing do nariz até a orelha, um óculos e um bindi.
Então, a partir dessa pesquisa, ela transforma tudo em algo extremamente atual. E diz “como as nossas tradições de belezas informam a nossa identidade diaspórica e conseguem nos ajudar a construir um senso de comunidade?”, que é algo sobre o qual já falamos aqui. Como escolher nossa própria forma de nos apresentarmos enquanto vivemos num estado de limbo que coloca a gente num caminho de cura dessas feridas?
Essas duas são referências para mim pois conseguem pegar assuntos muito complexos e traduzi-los de forma mais popular sem perder a complexidade dos assuntos.
✦ Ada Chen Is the Asian Artist Turning Stereotypes About Chinese Americans Into Jewelry | Teen Vogue
✦ Sanam Sindhi is spotlighting South Asian beauty | Dazed Beauty


[R] Em homenagem à nossa conversa, hoje quis muito trazer referências de pessoas reais, que podemos acompanhar numa vida até muito semelhante à nossa, e que tem muito a ver com o que você trouxe sobre viver o presente, o hoje. Todas as minhas referências também serão do Instagram.
A primeira é ume das artistas que mais me comove em tempos presentes, quando ouço uma poesia dile meu olho enche de lágrimas, é Alok Menon, uma pessoa trans não-binária, artista de ascendência sul-asiática. Ile pauta muito essa retomada de uma ancestralidade sul-asiática na própria performance e trabalhos que envolvem slam poetry, texto, acabou de lançar um livro. E acho muito bonito ver a relação de Alok com a própria família, porque a avó, a mãe, as mulheres da família são muito apoiadoras da transição, e da escolha por uma identidade de gênero que realmente representa quem ile é. Amo inclusive quando Alok tem uma pesquisa que pauta que sim, sociedades asiáticas possuem espectros de misoginia e cultura patriarcal, mas isso, ao mesmo tempo, é muito europeu e hegemônico, num sentido de que sempre existiu o gênero neutro ou mesmo o terceiro gênero na Índia.
[C] Exato.
[R] O que Alok fala é como, em vez de olharmos para essas comunidades de forma super preconceituosa, já entendendo como elas são construídas, na verdade elas eram historicamente, secularmente mais abertas para outras construções de gênero.
Minha segunda referência é Chella Man, um artista, poeta, ativista e escritor, homem trans que de forma muito corajosa e necessária fez a transição no seu canal de YouTube como possibilidade de poder narrar a própria experiência, e dar bibliografia, referências para outras pessoas.
Amo como o Chella Man alinha essas práticas, pois não é só sobre ser ativista e comunicador, mas também sobre ser artista e fazer exposições. Ele ainda acabou de lançar uma linha de tatuagens temporárias com os desenhos de sua autoria. Olho para a caminhada e vida profissional do Chella Man com muita inspiração, até buscando algumas pistas do que quero construir na minha própria carreira.
Trazendo agora duas referências brasileiras, acho muito importante até para o público e demais ouvintes, para termos outros pertencimentos em questão de nacionalidade, regionalidade, enfim. A primeira seria a Carol Matsubara, mulher cis de ascendência asiática, nipo-brasileira, e modelo “plus size”. Amo como ela assume o próprio corpo sem antes defini-lo como sendo diferente. Acho que essa é a brisa, sabe? Não é sobre corpos que fogem da regra neutra e magra terem seu viés no mercado que é diferente. Não, é só sobre ser um corpo.
Amo como a Carol assume seu corpo, mas para além disso, ela tem uma personalidade muito incrível e engraçada, faz resenhas de comidas e restaurantes maravilhosos em São Paulo, então também fica a dica para quem está procurando restaurantes asiáticos maras. Atualmente ela está morando no Japão, trabalhando como imigrante em fábrica, e é mais interessante ainda, poder acompanhar relatos dessa jovem mulher asiática brasileira, imigrante e também influencer/comunicadora. Acho que a história dela diz muito sobre esse momento presente que estamos vivendo.
E a última seria a Singh Bean, mulher cis, artista de ascendência sul-asiática, que tem um trabalho relevante com colagens, muito necessário. Adoro acompanhá-la porque ela tem um olhar poético perante a vida, trazendo imagens da própria ancestralidade, fotos dela criança, ao mesmo tempo em que é essa mulher com várias tatuagens. Amo poder ver esse híbrido de que tanto falamos no começo do episódio, de alguém que pode ter o cuidado com suas raízes, a poesia de sua ancestralidade, sendo um corpo autônomo, tatuado, que foge das normatividades.
[C] Você falando de referências brasileiras me fez lembrar de uma super referência minha, o Vitor Narumi, artista, homem trans não-binário, que também participou da minha performance no IdentidadesImportadasCompactadasDemarcadas.Zip. A gente se conheceu na faculdade, é alguém que admiro muito porque acompanhei um pouco de sua jornada, um pouco de longe, um pouco de perto. Ele participou de alguns editoriais da Inserto, e sempre me sinto muito acolhida pela sua existência, e por suas práticas. Ele faz com que não me sinta tão sozinha nessa cena criativa em que ainda acabamos sendo tokens.



✦ “Trans/Generation” — Alok Vaid-Menon | UnErase Poetry
✦ Chella Man Is The Trans, Deaf Activist Changing the World | Seen | NowThis
✦ #LivreSim: seis mulheres falam sobre a decisão de parar de se depilar | Marie Claire
✦ A vida é aqui: o místico interior nas colagens de Singh Bean | Minas Nerd
[R] Encerrando mais um episódio, muito obrigada novamente, Vivi, por sua participação. Aprendi demais, foi incrível.
[C] Foi uma honra estar aqui, sempre aprendo muito quando falo com você, e é isso.
Vídeo: Obra “Cosplay de mim mesma”, idealização da artista transdisciplinar Cyshimi.
[R] Gente, muito obrigada pela escuta de mais esse episódio! Lembrando que vocês podem ouvir os episódios anteriores na maioria das redes de streaming, e tudo isso está organizado no Medium.
Vocês podem falar conosco e enviar sugestões, ou apenas acompanhar as atualizações nas nossas redes.
Um beijo, e até mais!
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