Live de Adelaide Ivánova no Instagram em 15/03/2020, disponibilizado em áudio no Soundcloud.
Intro
Vou deixar explicado não sou especialista da área de saúde, e estou falando como ativista de base, como alguém dos movimentos sociais que não tem condições ou autorização para dar orientações em relação à saúde. Sou ativista, e nessas últimas 72 horas juntei algumas informações que acho que podem ser úteis, não porque na Alemanha temos mais ou menos estrutura do que no Brasil, porque aqui é melhor ou pior, nada disso. É simplesmente porque a crise chegou aqui mais cedo, e tivemos que reagir antes, e inventar soluções antes, não tem nada a ver com ensinar nada.
[0:58] A crise está se acirrando no Brasil, está ficando mais forte agora, e é só por isso que vim compartilhar essas informações, pois acho útil para a esquerda ampla, para nós, que acreditamos na união das pessoas, para a derrubada do capitalismo e do coronavírus.
[1:20] Dividi a live hoje para que seja conciso. O ponto nº 1 é falar dos negacionistas, que têm sido um problema nos últimos dias para nós, para a luta dos movimentos sociais. O ponto nº 2 é falar que“a análise correta ajuda a traçar as táticas corretas”; na parte nº 3 vou falar sobre “memes vs. ciência”, nº 4, “pânico vs. negligência”, nº 5, “consumo vs. consumismo”, e nº 6, “experimentos” que fizemos por aqui nas últimas horas.
Parte 1 — Negacionistas e o problema da falsa simetria
[2:13] Vamos começar então com os negacionistas. Negacionista é aquele tipo de pessoa que diz que não é pra se preocupar com coronavírus. Existem negacionistas do holocausto, do aquecimento global, os que dizem que a Terra é plana, enfim. O problema dos negacionistas são dois, entre outros: o ponto 1.1 é que eles podem criar falsas simetrias e, nesse sentido, vai ter gente que vai dizer “ai, coronavírus é uó, mas é só uma gripe, a malária mata muito mais”. O problema desse tipo de argumento não é nem que isso não seja real, porque, de fato, a malária, assim como diabetes, e aquela outra gripe, mata muito mais do que o coronavírus. Mas isso nem ajuda a resolver o problema concreto que temos agora, uma pandemia.
[3:21] Isso já é uma argumentação incompleta, e que não ajuda. Ela não problematiza a saúde pública, o sistema de saúde, tampouco essas doenças que estão relacionadas com questões de classe, porque ninguém em Manhattan vai morrer de malária, a não ser que a pessoa vá para um país das periferias do capitalismo. Então, cuidado com essa argumentação, que inclusive achamos que pode ter causado muitos estragos. Vou falar disso mais para a frente, segura a onda.
[3:58] O ponto 1.2 é a argumentação da “cortina de fumaça”. Ela também não ajuda a resolver o problema material, que é: as pessoas estão se contaminando e morrendo. Não resolve o problema concreto de que 30% das pessoas que morrem por coronavírus têm mais de 50 anos de idade, com doenças prévias, enfim. Um dos argumentos que ouvi recentemente, que exemplifica isso de que coronavírus é uma cortina de fumaça se relaciona à problematização da OTAN, que está agora com essa ação na Rússia. Não é que não é para problematizar essa ação, ou para não questionarmos o imperialismo dos Estados Unidos e da União Europeia, mas isso, já estou me repetindo aqui, não apaga a realidade material de quem será afetado e terá os tratamentos negados e negligenciados.
[5:16] No caso da Alemanha, sabemos que refugiados não serão as pessoas que terão acesso ao tratamento rápido, que existirá uma fila, de certa forma, uma fila não oficial de quem terá acesso ao tratamento ou não. Sem contar o fato de que o sistema público de saúde da Alemanha, que funciona de um jeito escroto, baseado em lucro, não tem capacidade de receber todo mundo. Usando como exemplo o contexto da Alemanha, a cortina de fumaça, de problematizar a União Europeia etc., não resolve o problema material do aumento diário de casos e de mortes, certo?
[5:56] No caso do Brasil, esse comportamento negacionista pode ter sido um pouco fatal — fatal não, é exagero — , pode ter sido grave, considerando que tivemos o carnaval duas semanas atrás, e muitos turistas foram ao Brasil. Então, a crise de atendimento, o SUS sendo sobrecarregado, talvez aconteça muito mais rápido no Brasil do que imaginamos. Já perdemos duas semanas fazendo piada de coronavírus, mas a partir de agora é fundamental que todo mundo se cuide, espalhe e se sinta multiplicador da conscientização e da mobilização em torno da doença, especialmente por causa dos mais vulneráveis, que sabemos quem serão no Brasil.
[6:51] Vão ser os trabalhadores do SUS, os trabalhadores ambulantes, que precisam de pessoas circulando na rua para conseguirem se sustentar, que também têm contato intenso, serão as pessoas que precisam pegar transporte público e não conseguiram nenhum tipo de licença, ou que não podem continuar trabalhando, enfim. Vou falar disso no item 6, um pouco mais pra frente.
Parte 2 — Análise correta produz ação correta
[7:11] Sobre o item número 1, negacionistas, encerro. Parte 2, que já falei um pouquinho, de certa forma, que é “a análise correta produz a ação correta”. É pensar que se a gente levar o assunto a sério agora, conseguiremos criar ou inventar soluções. Essa crise causada pela pandemia é muito nova, nos últimos anos não tivemos notícias sobre ela, a gente não sabe muito bem o que fazer com isso, e “a gente”, digo, enquanto sociedade civil.
[7:54] É por isso que é importante levar a sério e tentar produzir análises corretas, pois elas farão com que a gente consiga inventar táticas corretas para o nosso dia a dia, e fazer as demandas corretas para os governos. Um exemplo é como isso afeta a militância. Vou dar um exemplo aqui, baseado em Berlim, mas que pode ser aplicado a qualquer lugar do mundo: para 19 de abril está marcado, aqui em Berlim, o despejo de uma ocupação de um prédio muito importante que acabou virando movimento social.
[8:33] Eles estão tentando fazer a evacuação deste prédio há muito tempo, e a resistência faz com que as pessoas possam continuar morando lá e fazendo o trabalho de formação política há anos. Essa ocupação tem contado, há anos, com o apoio dos ativistas da sociedade civil, e toda vez que é anunciado o despejo a gente faz barricada e atos na frente do prédio. Como o despejo está marcado para 19 de abril, e provavelmente as quarentenas e esse regime de emergência que estamos vivendo agora ainda continuará, ou seja, o regime de evitar aglomeração de mais de 50 pessoas, pelo menos em Berlim, vai influenciar na proteção, por exemplo, deste grupo. E aí precisamos reinventar a forma de lidar com esse problema concreto dos despejos.
[9:31] E uma análise correta da situação, que leva a situação a sério, permite que a gente possa se articular tanto pela via jurídica como pela parlamentar… Quem é filiado ou próximo a partido, para que se pause, o ideal seria acabar com o caralho do despejo, mas que se pausem os despejos. E é aí que entra a importância de fazermos análises, já estou me repetindo, análises corretas da situação concreta, para criar as devidas demandas. Esse é um dos exemplos, e vale para o Brasil também.
[10:07] Outra demanda importante, que pode ser feita aqui, também em relação à articulação política e judicial, é a não criminalização, digamos assim, a não punição de quem atrasar os seus aluguéis, ou então o não despejo de quem atrasar aluguéis. Porque a vida de quem é freelancer, de quem é autônomo, de quem é trabalhadora de cuidado não pago, de ambulância, enfim, de quem é precariado, cujo sustento está sendo ameaçado. Muita gente não sabe como vai pagar o aluguel. Essas pessoas que estão com o sustento ameaçado ficam vulneráveis para despejo, e essa é a outra articulação que é importante de ser feita politicamente, não em massa.
[11:03] E isso que é o foda do coronavírus, ele desestabiliza o cerne da luta de esquerda, que é a criação de multidão, de massa, de estar junto e se unindo. Vou falar mais no item 6. Este é o tópico 2, a análise correta ajuda a gente a tomar ações corretas, para a situação que estamos vivendo agora.
Parte 3 — Meme vs. ciência
[11:30] Nº 3, esse é muito importante para o Brasil: “meme vs. ciência”. A gente adora o meme, tenho meu dealer oficial de memes chamando Arlandson Matheus, professor de matemática da Paraíba, melhor distribuidor de memes do Brasil, ele faz a melhor curadoria do Instagram. Recomendo. Os memes também se espalham rapidamente, igual coronavírus, e tanto podem ajudar a ser um momento de respiro, de dar uma gargalhada online, como também deseducar. Cuidado com o que vamos compartilhar, existem coisas que são muito engraçadas, obrigado, continuem compartilhando, e existem coisas que deseducam.
[12:15] Principalmente agora, que no Brasil parece que se aproxima um momento crucial de derrubada da curva antes de foder a merda. Por exemplo, acho que era um meme que o Arlandson compartilhou pelo Facebook, uma lista de ingredientes que, no fim, trazia uma colocação que acho super interessante pensar: a sobrevivência do coronavírus será anticolonial. Achei do caralho pensar em inventar, inventar não, mas usar a sabedoria das mulheres do campo, das indígenas, um saber milenar e fundamental, mas sem se tornar não científico, nesse sentido.
[13:10] Então, a solução para o corona vai ser anticolonial, porque nossa luta é anticolonial, mas ela não pode ser anticientífica, e para isso precisamos tomar muito cuidado com esse espalhamento de memes, que dizem que a doença será curada se cheirarmos loló e enchermos o cu de pitú. Sabemos muito bem — I love loló, querida, fui criada no loló — que álcool e drogas também baixam a imunidade, então temos que levar isso a sério, o potencial deseducador desse tipo de coisa. Então, assim, vamos encher a cara porque está difícil de aguentar, porém, isso não vai curar o corona.
Parte 4 — Pânico vs. negligência
[14:02] Item 4, “pânico vs. negligência”. O Intercept Brasil fez aquele post falando sobre a medida certa entre pânico e inércia, e a resposta é simples: levar a coisa a sério. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Pânico é quando tem um monte de gente e alguém diz assim “meu deus, tem uma barata aqui!”, e todo mundo sai correndo sem saber o que fazer. Mas ter pessoas que de fato estejam levando a coisa a sério, que estão podendo ficar dentro de casa, levando a sério os 2m de distância, e tal, não significa que elas estejam agindo sob pânico, e sim que elas estão ouvindo as orientações dos ministérios da saúde, das secretarias da saúde, das universidades, dos pesquisadores e especialistas, e seguindo à risca. Tem coisas com as quais precisamos ter cuidado, por exemplo, o uso de máscara. Como falei no começo, não sou especialista da saúde, mas aqui na Alemanha está começando a faltar máscaras para os profissionais da saúde nos hospitais. O uso de máscara é recomendado para quando se está desenvolvendo sintomas, precisa sair de casa e ainda não fez o teste.
[15:21] Mas se você não está desenvolvendo sintomas e não precisa sair de casa, não precisa comprar o caralho da máscara. Vai fazer falta, então, calma aí. E a negligência está um pouco relacionada aos negacionistas, que dizem que “ai meu deus, aqui temos dengue”. De fato, temos dengue no Brasil, é um problema grave, mas não significa que a gente vai se expor, ou expor outros. É uma questão, também, de saber que no momento em que decidimos não nos cuidar, mandamos se foder, “vou sair mesmo, foda-se”, a gente pode estar, inclusive, expondo outras pessoas, porque podemos ter o vírus sem desenvolver sintomas. Pronto. Pânico vs. negligência, o meio termo é seriedade. Aqui já pensando em Lênin, que falava que temos que levar a sério todos os debates.
Parte 5 — Consumo solidário
[16:14] Número 5, “consumo vs. consumismo”, esse tópico é muito importante. Os bens, aqui, as coisas, estão todas acabando, e vão acabar em todo canto, assim, vai ser mais difícil de comprar. E aí, uma coisa importante de se pensar é em um consumo solidário. Não estou sugerindo aqui que ninguém passe necessidade, vá ao supermercado e diga “ai meu deus, eu não vou comprar esse macarrão porque alguém vai precisar”. Só que, em vez de comprar todos os pacotes de macarrão, pensar que alguém vai precisar também. Deixa eu voltar um pouco e dar um pouco de contexto, numa perspectiva anticapitalista.
[16:58] O papel higiênico, pelo menos aqui em Berlim, já é impossível de encontrar, há mais ou menos uma semana. Está bem difícil. Tenho muito pouca gente na minha vida aqui, e Lukas, o famoso comuna, meu companheiro, estava em uma reunião presencial e não pode vir em casa trazer as coisas para mim, então, na minha quarentena de asmática, grupo de risco, tive que sair de casa e ir ao mercado. Quando estava chegando no mercado popular aqui do outro lado da rua, já vinha uma caralhada de gente saindo com todas as sacolas do mundo, com os carros lotados. O que estamos observando? E isso é uma das coisas que conversamos ontem no grupo autônomo de luta pela moradia. Quem tem dinheiro para comprar muita coisa vai acabar comprando muita coisa de uma vez. E não vai comprar o papel higiênico mais caro, e sim o mais barato, que ela geralmente nunca compra, porque elas precisam comprar muito, na cabeça delas.
[18:01] Quem tem pouco dinheiro entra no supermercado procurando o papel higiênico barato, pra comprar um pacote, que não tem mais. O que ela vai achar é o papel higiênico mais caro de todos, o macarrão mais caro de todos. Leite agora só dá para encontrar se for o vegano, que nem é tão ruim assim, podemos trazer alguns não veganos para a nossa luta por imposição, porque não tem mais leite de vaca. Mas são produtos mais caros, e tal. Então, está se criando um gap não só porque é difícil encontrar as coisas, mas as coisas que ainda existem nos supermercados são os mais caros. É o papel higiênico super macio que vai deixar o seu cu brilhando, o azeite, não tem mais óleo comum, só o azeite da casa do caralho, importado não sei de onde, então é isso.
[18:50] Eu quis trazer o número 5 não para sugerir a ninguém de passar por necessidade, para deixar de comprar o que precisa pensando nos outros, mas para sugerir que a gente se torne multiplicador desse debate, para falarmos sobre isso, e chamar a atenção para o fato de que tem gente que pode comprar muita coisa de uma vez, e tem gente que não pode. Essas pessoas que não podem comprar tudo de uma vez vão ao supermercado inclusive esperando encontrar os itens mais baratos, que estão em falta. Então vamos pensar um pouco sobre isso, sobre a satisfação que a gente sente nesse momento de abandono, mesmo, da gente só ter uns aos outros, a satisfação de ir no supermercado e encher o carrinho de compras pra sentir um pouco de compensação por causa dessa dor coletiva que faz a gente ir ao supermercado e tocar o terror, e multiplicar um pouco esses cuidados com os outros por meio da palavra, que podemos espalhar.
Parte 6 — Relato de experiências em Berlim
[19:45] E agora eu vou chegar no número 6 e último ponto, que são os experimentos que temos feito nos últimos dias aqui em Berlim. Aqui, faço parte de dois grupos, o movimento por moradia, que é uma coalizão muito grande de diferentes grupos pequenos, e sou da base do partido, Die Linke. Sou ativista nas bases, não sou contratada pelo partido, nada disso. Não estou representando o Die Linke. Fizemos alguns experimentos essa semana, reuniões por Skype e plataformas online. Quem não faz parte do grupo de risco e ainda não desenvolveu sintomas foi nas reuniões presenciais desse grupo, os jovens. Quem é do grupo de risco, meu caso, ou quem já está meio gripado sem saber se é coronavírus ou não também participou de casa.
[20:47] E, no decorrer dos dias, propusemos ações, das quais já identificamos vitórias e falhas, vou compartilhar tudo isso com vocês, e também esse pequeno experimento que fiz no meu prédio, que já apontam algumas coisas a serem ajustadas, algumas coisas funcionam, outras não. Começando por essa experiência feita no prédio, acho que alguns de vocês viram aqui pelo Instagram que fiz esses cartõezinhos de cartolina, bem frango pra não deixar ninguém assustado, não ser pesado e não sei o quê, e dentro deles tinha uma cartinha que imprimi no computador, só assinei a mão, me apresentando e dizendo que gostaria de construir uma rede de solidariedade no nosso prédio para esses dias que vem, que não sabemos o que nos reserva. Coloquei meu número de celular, sugerindo a criação de um grupo de zap. Temos no prédio alguns aposentados, é um prédio pequeno, são 15 apartamentos.
[21:59] 5 andares, só. Tem outros blocos, mas inicialmente só fiz nesse bloco, porque no outro tem um nazi, e isso inclusive já é uma coisa pra se pensar, em como lidar com isso, racismo. Enfim, escrevi essa cartinha e coloquei elas nas caixas de correio, que ficam no térreo. E interessante, vou trazer os resultados disso até agora, domingo. Tem apartamentos em que moram uma pessoa só, outro que são um casal, outro que é república. Desses 15 apartamentos, 4 responderam de volta. Então criamos uma rede de solidariedade de 5 apartamentos contando com o meu, o que dá entre 7 e 10 pessoas, não sei exatamente, para, por exemplo, fazer rotatividade de quem vai à feira. Em vez de todo mundo ir sozinho, e todo mundo se expor ao vírus, vai uma pessoa que tenha carro com uma listinha de compras, de todos nós. Amanhã vai outra pessoa, e com isso menos pessoas são expostas. Essa é uma ideia massa.
[23:17] Na cartinha eu dizia o seguinte: “se você pode oferecer ajuda, ou se você precisa de ajuda, escreva para o meu número”. O interessante é que quem respondeu foi só quem pode oferecer ajuda. São pessoas mais jovens, e isso pode significar duas coisas: que os aposentados e as pessoas mais velhas que optaram pelo autoisolamento há muito mais tempo não estão descendo para abrir as suas caixinhas de correio porque não estão deixando suas casas de jeito nenhum, ou elas não têm Whatsapp, o que também pode ser. Isso trouxe um desafio, essa ideia da cartinha já era algo que vínhamos discutindo nos últimos dias no grupo da moradia, e que algumas pessoas também reproduziram nos seus prédios, e temos visto, desde antes de ontem, o mesmo padrão.
[24:21] Quem responde são pessoas jovens, fora do grupo de risco, que têm acesso à internet, e estão saindo de casa. As pessoas que queremos ajudar, os velhinhos, maior grupo de risco, não estão respondendo ou pedindo ajuda, fato que traz mais especulações: nessa cultura de individualismo, em que a gente é ensinado a sentir vergonha de pedir ajuda, essas pessoas não estão tendo coragem de pedir ajuda por não quererem ser julgadas, ou estão pensando “doido, vão me maltratar mesmo, vou ficar aqui”, ou elas de fato sequer tiveram acesso a essas cartinhas. Identificamos este primeiro problema, ou seja, o grupo que a gente quer ajudar não está respondendo. Como é que faremos, então?
[25:14] Vamos ter que mudar. Não vamos poder mais entrar em contato com as pessoas pela caixinha do correio que fica no térreo dos prédios, alguns são super altos, e a maioria dos prédios, pelo menos na Alemanha, não possuem elevadores… Olhe aí, Mariana, que é uma vizinha minha aqui, está dizendo que o que ela percebe com a vizinha idosa é que ela não tem Whatsapp, não usa e-mail, nada. Então, identificamos que precisávamos mudar de tática, e fazer duas coisas: colar nas portas das casas, ou nos corredores, esse papelzinho aqui, ou seja, não deixar mais nas caixinhas de correio.
[26:03] Vou ler o texto que traduzi para o português. Quem quiser o modelo disso aqui traduzido para o português no Word, manda mensagem pra mim por DM, com seu e-mail, que eu mando esse modelo de doc para você. E o textinho desse papel diz o seguinte, “queridos vizinhos, você está de quarentena e precisa de ajuda, tipo cartas pra colocar no correio, boletos para pagar, feira para fazer? A gente te ajuda. Coloque um bilhetinho por baixo da minha porta, ou na minha caixinha de correio, me ligue, me mande um SMS, um zap, ou fale com o porteiro para que ele fale comigo. A gente vai entrar em contato com você. Atenciosamente”, aí você coloca seu nome, se quiser fazer isso.
[26:48] Embaixo tem uma tabelinha onde seus vizinhos podem colocar nome, telefone, etc., e mais abaixo, no fim de tudo, tem o link do aplicativo do Ministério da Saúde, e outras informações. Isso é para a gente tentar, mais positiva e efetivamente, entrar em contato justamente com as pessoas que mais precisam de ajuda, que já optaram pelo autoisolamento há mais tempo, pessoas velhinhas sem internet. Outra coisa que testamos hoje e eu ainda não sei como foi pois não pude ir: fomos ao bairro mais pobre de Berlim e fizemos uma ação porta a porta, sem abrir a porta, e levamos informações às pessoas. Dizendo que somos da organização fulano de tal, e estamos criando uma rede de apoio com moradores do prédio, se a pessoa estaria interessada, se tem telefone, usa zap, fala alemão, e tudo mais.
[27:55] Tem que levar tudo isso em consideração. Foi uma ação sem contato direto, os ativistas ficaram do lado de fora, batiam na portinha e falavam com as vovós e vovôs, eles dentro de casa e as pessoas do lado de fora. Não tenho atualizações porque não fui, entrei em contato agora com os camaradas, mas ainda não recebi notícias, assim que souber como foi, e como foi a reação dos velhinhos… Porque pode ser que eles nem tenham respondido, por medo, tipo “quem é que está batendo aqui na minha porta? Quem é esse doido?”, tem gente que não fala alemão, enfim, vou atualizar tudo isso pra vocês depois.
[28:35] Então é isso: se organizar e entrar em contato com vizinhos, falar com as pessoas da sua rua, e tal. E aí vou trazer rapidamente um protocolo improvisado da reunião que fizemos ontem com o grupo de moradia da qual faço parte, o grupo de trabalho de formação política. Tínhamos algumas questões a serem resolvidas, todas práticas. Criamos dois grupos de Telegram por bairro, um grupo para discussão e compartilhamento de informações, e outro para ajuda direta. Outra coisa que estamos tentando criar é uma rede para cuidado de crianças, porque tem muita gente que não conseguiu licença do trabalho e tem filhos.
[29:46] E as escolas e jardins de infância foram fechados. Estava conversando agora com uma amiga de Recife que me informou também que as escolas e jardins de infância serão fechados, pelo menos por lá, segundo a Prefeitura, que vai continuar oferecendo merenda. Não sabemos como ficará a situação desses pais e mães, principalmente das mães solo, se elas terão essa licença remunerada. Essas situações são semelhantes na Alemanha, e estamos tentando criar essa rede entre pessoas. Tomas, um amigo de Recife, está dizendo que na China o sistema de saúde fez o mapeamento online dos casos em isolamento. “Na Alemanha não? Isso ajudaria demais a localizar os que mais precisam de ajuda”.
[30:43] Olha, Tomas, não oficialmente. Não existe uma plataforma de autoinscrição de quem optou pelo autoisolamento, estamos fazendo este mapeamento, nós, a sociedade civil de ativistas, batendo de porta em porta. Obviamente na China o governo tem outro sistema, diferente do alemão. Aliás, viva Cuba. Mas é uma ideia, vou falar para o povo do partido na reunião de amanhã, que a gente vai ter, para fazer esse mapeamento online dos casos em isolamento. Continuando sobre o protocolo da reunião de ontem do grupo autônomo de moradia, então, criação de grupos de Telegram por bairro, um de informação e outro de ajuda, a outra coisa é o compartilhamento de ajuda de cuidar de crianças, e além disso estamos fazendo a articulação política e judicial por pelo menos o adiamento dos despejos e deportações.
[31:50] Este tópico é de muita importância, de se parar as deportações agora. Inclusive, outra coisa é fechar os caralhos das fronteiras. O primeiro caso na Ilha de Lesbos foi identificado e isso pode ser uma tragédia humanitária inaceitável, também queremos fazer a liberação para ocupação imediata dos prédios vazios por especulação para as pessoas em situação de rua, e para os refugiados em situação de contêiner, aqueles que estão morando em situações extremamente insalubres. Outra coisa que a gente está precisando aqui e que talvez seja um adiantamento do que pode vir a ocorrer no Brasil são voluntários da área de saúde, que não trabalham mais na área. Gente com formação em saúde, tipo você, que fez o curso de Enfermagem mas decidiu não trabalhar como enfermeira e foi fazer outra coisa da vida.
[32:59] Pessoas que se formaram em Medicina mas não exercem, fazem outra coisa, pessoas da área de Biomedicina, enfim, como voluntárias de atendimento telefônico. Pelo menos aqui na Alemanha, não sei como é a situação no Brasil, e se alguém souber por favor deixe nos comentários, a orientação é a seguinte: se você começar a sentir os sintomas, antes de ir ao hospital e ocupar a vaga de alguém por causa de um resfriado, espere um pouquinho, e enquanto isso você liga para o hotline bling e descreve seus sintomas para receber orientações. No Brasil, o Ministério da Saúde desenvolveu o app para ir monitorando sua própria situação, mas aqui não tem app ainda, inclusive, o jornal Der Spiegel, um jornal bem uó daqui, publicou uma nota positiva elogiando o Ministério da Saúde brasileiro, quem diria.
[34:02] Tempos de Bolsonaro, mas enfim, não temos esse app ainda, muito provavelmente alguém está fazendo e deve sair nas próximas horas ou dias, mas por enquanto existe essa hotline, esse telefone… Ó, 136 [Disque Saúde], a amiga Babi está informando. Esse é o número para você se informar e pedir ajuda, que certamente vai precisar de voluntários. Aqui na Alemanha é muito difícil ser atendido por esse número agora por conta da sobrecarga, as pessoas estão tentando entrar em contato e não estão conseguindo porque tem pouca gente trabalhando nesse atendimento. Então já fica a dica aí para espalhar a notícia de quem puder se voluntariar para tirar dúvidas das pessoas pelo telefone, procurar algum grupo local e oferecer ajuda. Importante.
[34:58] Como diria o golpista do Beto Guedes, “vamos precisar de todo mundo”. Um mais um é sempre mais do que dois. Outra coisa que é um debate super difícil de termos na Alemanha é a da esquerda se engajar com a igreja, também super difícil no Brasil, onde pelo menos tivemos, historicamente, e acredito que ainda tenha, mas não tão forte como nos anos 70, a igreja católica mais próxima dos movimentos sociais. Inclusive ano passado estive no MST de Caruaru, e a igreja católica no interior ainda ajuda o MST. E aqui na Alemanha a lógica é girada, a igreja católica é extremamente conservadora, e a evangélica é progressista, pró refugiados, tem projetos, e tal.
[35:53] Mas ainda assim existem algumas barreiras políticas e históricas, e a gente está começando a se articular, os movimentos autônomos principalmente, tem muito punk, ateus, muita gente extremamente crítica à igreja, e tal, com dificuldade de se aproximar da igreja. Mas vai ser importante, porque a igreja está cheia de velhinhos, e a gente precisa, de fato, take it easy e se aproximar. Ano passado, acho, teve aquele debate que Sabrina Fernandes participou naquelas conferências da Boitempo [Editorial], com aquela menina maravilhosa, Debora Baldin, e tal, sobre anticapitalismo e democracia, ela fala justamente que a igreja está, muitas vezes, onde a esquerda não está. E a gente precisa se aproximar e criar alianças, talvez não se trate de uma aliança estratégica, talvez não compartilhemos do mesmo horizonte político socialista, mas trata-se de um aliado tático, que também constrói.
[37:03] Então os velhinhos estão lá, e para a gente aqui na Alemanha é um desafio fundamental de aproximação e união de forças com a igreja, que é onde estão os velhinhos, ou estavam, porque agora estão em isolamento. Coitadinhos. Por fim, encontrar um balanço entre usar a internet como ferramenta positiva, finalmente, que ao mesmo tempo convida para o individualismo, cada um com a sua cara enfiada no celular, mas que pode ser usada, #bacurau, para criar coalizão e redes de solidariedade em sua maioria. Só que por outro lado, a internet não é acessível a todas as pessoas. Nem todo mundo tem dinheiro para botar crédito no celular, ter acesso à internet, muita gente depende de wifi público porque não tem como ter internet em casa. Os refugiados e refugiadas que estão, por exemplo, vivendo em situações precárias, precarizadas, ou fodidas e lascadas têm essa questão também.
[38:10] Precisamos pensar nisso, que nem todo mundo tem dinheiro pra ter internet, então, ao mesmo tempo usar a internet sem esperar demais dela, porque tem os velhinhos, enfim, pessoas que não possuem condições. Outro ponto: é importante politizar a conversa sobre coronavírus sempre. Ontem, na reunião de grupo autônomo de moradia, a gente falou um pouco sobre isso. Tem muita gente dizendo “ai, mas a esquerda agora quer politizar um negócio que não é pra politizar! É pra ajudar as pessoas, e acabou”. Primeiro que se não for a esquerda para politizar os debates, quem vai ser?
[39:01] Segundo que se a gente não politizar o debate desde o começo, a direita vai se apropriar, com aquela ideia de caridade, de ajudar o próximo, sem problematizar devidamente. Um exemplo positivo que vimos foi na Grécia, naquela época brutal da austeridade, quando isso ajudou a politizar pessoas para a esquerda, ou o movimento independentista quando em Catalão as pessoas começaram a ser presas injustamente, e isso ajudou a politizar o debate para a esquerda, pois as pessoas começaram a falar sobre o projeto de autodeterminação como sendo de esquerda, politizante. No Brasil a gente teve um exemplo em 2013, que não é a mesma coisa, nota mental para mim mesma: cuidado com a falsa simetria.
[40:06] Mas a crise política que tivemos em 2013 não foi bem articulada, bem apropriada ou bem utilizada pela esquerda, e acabou que quem dominou a narrativa foi a direita. Então, como último ponto dessa live, que vou terminar agradecendo enormemente a participação e contribuição de vocês, suas dicas, e tal, é dizer que a gente tem que politizar o debate. Que se não fizermos isso, alguém vai se apropriar e contar a história do jeito que quiserem, como a direita sempre faz, sem fazer as análises corretamente.
[40:37] Aqui, o desafio para nós é politizar o debate para que ele também não abra precedentes para uma direita nazista que diz que nossos hospitais estarão lotados porque estão cheios de imigrantes e refugiados. É isso. Nossa luta será essa. E no Brasil vale também politizar o debate para lembrar que quem vai se foder é a classe trabalhadora. É o precariado, é o Nordeste do Brasil que só recebeu 3% do Bolsa Família. Politizar o debate desde já, em cada oportunidade que tivermos que falar com o vizinho que precisa de ajuda, falar com cuidado e carinho, sabendo identificar também quais são os limites da pessoa, porque se for um bolsonarista extremista, ele não vai escutar o que a gente tenha a dizer, mesmo.
[41:24] Mas se for um indeciso, ou uma pessoa que se diz apolítica, tentar mostrar que existem conexões aí, que o coronavírus muda a conjuntura e expõe as contradições muito, muito básicas do sistema capitalista, e expõe mais ainda as contradições da administração Bolsonaro, e no caso daqui, da administração neoliberal do partido democrata cristão de Angela Merkel, e das coalizões que ela faz. Galera… Faz quanto tempo que estou falando com vocês? 45 minutos. Coitados! Vocês têm perguntas?
[42:09] São 20:20 aqui, vocês têm alguma pergunta que queiram fazer, antes de me despedir para fazer meu jantar de quarentenada? Massa, Carol, pode espalhar para todo mundo, vou abrir o caralho do Instagram nas próximas 24h para quem quiser espalhar essa live, é muito longo, acho que ninguém vai ter saco pra ver tudo isso, mas espero que pelo menos vocês tenham tomado nota, ou gravado na cabeça, quem tiver uma memória melhor que a minha, para se sentirem multiplicadores desses experimentos e dessas problematizações.
[42:55] A gente teve, como disse, algumas coisas bem sucedidas, como o fato de termos tido uma resposta muito rápida e positiva a essa criação da rede de solidariedade. Se você for pensar que do meu prédio de 15 apartamentos, 5 estão conectados, significa que um terço dos apartamentos, das pessoas, estão interessadas em ajudar. Mas essa resposta positiva traz também outros desafios pra gente, e era um pouco esse o meu objetivo. Apois pronto, galera, qualquer coisa vocês mandem DM, repetindo: quem quiser o modelo dessa tabelinha me mande DM com e-mail, que eu mando o doc, que você também pode adaptar da forma que achar melhor, de acordo com sua língua. Traduzi para o recifense porque essa é a minha língua, e ficamos em contato por aqui, vou abrir depois um box de perguntas nos stories para quem tiver perguntas nos próximos dias, e tentem fazer isso nas vizinhanças de vocês, em maior ou menor grau, se cuidem, e tamo junto, queridas, só estou aqui enchendo o ouvido de vocês de merda porque estou de quarentena e não tenho como sair! Um beijo bem grande, se cuidem, beijo Lelê, Samita, Raquel, mainha, xau meus amores!